Uma das mais significativas composições de Augusto dos Anjos é o soneto “Aberração”. Ele não tem a mesma popularidade de “Versos íntimos”, considerado uma amostra do pessimismo do poeta, nem de “O morcego”, no qual o eu lírico apresenta esse mamífero como uma metáfora da consciência humana, mas constitui um veemente testemunho da sua filiação à estirpe dos melancólicos.
Conforme procurei ressaltar em “O evangelho da podridão”, a melancolia não só define a configuração anímica do eu lírico de Augusto dos Anjos, como também determina alguns dos procedimentos estilísticos presentes em “Eu e outras poesias”. É sob a sua “asa” que ele se ampara, segundo se lê em “Queixas noturnas”, para fugir às armadilhas do prazer.
Transcrevo, a seguir, o soneto “Aberração”:
Na velhice automática e na infância,
(Hoje, ontem, amanhã e em qualquer era)
Minha hibridez é a súmula sincera
Das defectividades da Substância.
Criando na alma a estesia abstrusa da ânsia,
Como Belerofonte com a Quimera
Mato o ideal; cresto o sonho; achato a esfera
E acho odor de cadáver na fragrância!
Chamo-me Aberração. Minha alma é um misto
De anomalias lúgubres. Existo
Como o cancro, a exigir que os sãos enfermem...
Teço a infâmia; urdo o crime; engendro o lodo
E nas mudanças do Universo todo
Deixo inscrita a memória do meu gérmen!
A representação da melancolia aparece em várias imagens do poema. É significativa, por exemplo, a referência à hibridez como súmula das defectividades da Substância, que filosoficamente nomeia o que “subjaz e persiste no decurso das mudanças”. Embora a rigor não se confundam, a Substância confunde-se com o Ser. Segundo Julia Kristeva, em “Sol negro”, o melancólico se ressente de uma defecção ontológica, que o leva a perder o referencial identitário. Isso faz com que a desejável unicidade concernente à percepção de si e do mundo ceda ao hibridismo. Não é outra a ideia transmitida por esse “misto de anomalias lúgubres”, em que a anomia interior se reveste de sombria tristeza.
No segundo verso da segunda estrofe, a índole melancólica do eu lírico fica ainda mais patente pela comparação com Belerofonte – segundo Kristeva, “o primeiro melancólico grego” (“Sol negro”, p. 14). Esse herói mitológico se tornou famoso por, montado no cavalo alado Pégaso, ter derrotado a Quimera lançando-lhe na garganta chumbo derretido.
Tal feito lhe trouxe a fama de herói, mas teve uma consequência trágica. É que, incensado pela glória, Belerofonte resolveu voar até o Monte Olimpo, e isso acabou irritando os deuses. Zeus então fez com que uma vespa picasse Pégaso, e com isso Belerofonte teve que voltar à Terra, onde viveu o resto dos seus dias como um mendigo.
Homero descreve Belerofonte, no canto VI da Ilíada, como uma vítima “de um exílio imposto por decreto divino”. Sua tristeza decorre de um mal obscuro, cuja causa no fundo ele desconhece. Nessa imagem mítica da melancolia, o sofrimento resulta da sua desgraça perante os deuses. Ele os provoca com a sua arrogância (hubris). Sua história passou então a ser vista “como uma metáfora para a melancolia, representando a queda de um grande herói e a transição de um estado de glória para um de desespero e isolamento” (Wikipédia).
Esse estado aparenta o herói a Prometeu e a Adão, que desafiou a ordem de não provar do “fruto proibido”. Com esse gesto, segundo a mitologia bíblica, ele acabou perdendo o Paraíso e incriminando a nós todos. A obra de Augusto repercute essa perda; nela perpassa o sentimento de uma culpa atávica, que remete à transgressão original.
Decepção, introspeção e desencanto são estados que derivam da prevalência do humor melancólico (segundo os antigos, a “bile negra”). No soneto de Augusto, a referência à morte do ideal e do sonho, bem como ao achatamento da esfera (terceiro verso da segunda estrofe), demonstra isso. Tal quadro alude à famosa gravura Melancolia I, produzida pelo renascentista Albrecht Dürer.
Nessa composição alegórica, que é considerada uma das mais expressivas e sintomáticas representações da melancolia, uma figura com asas se encontra cercada por uma série de objetos. Entre eles, uma esfera e um poliedro irregular, que segundo estudiosos sugerem uma ligação entre a disposição melancólica e a busca pela compreensão das leis do universo. A poesia de Augusto do Anjos testemunha essa busca incessante, traduzida na obsessão pela atividade intelectual e nas recorrentes perquirições a que o eu lírico se entrega, “ensanguentando os olhos na vigília”. “Para iludir minha desgraça, estudo” – confessa ele no “Poema negro”.
Merece destaque em “Aberração” a referência ao achatamento da esfera, um efeito que aparentemente não se contempla na gravura de Dürer. A explicação está em que, sendo a esfera um símbolo de simetria e perfeição, o ato de achatá-la representa uma subversão dessas características. “Pode representar a visão distorcida da realidade que muitas vezes acompanha estados melancólicos, onde a perfeição e a harmonia parecem inatingíveis.” (Copilot, com checagem das referências).
O achamento, em suma, indica desequilíbrio e desarmonia, e nesse sentido confirma a percepção que tem o eu lírico de ser a sua alma “um misto de anomalias lúgubres”. Entre elas, a de achar “odor de cadáver na fragrância”. Esse tipo de inversão é comum na representação da melancolia e se liga à dificuldade do melancólico em obter prazer, à sua fixação na morte e, sobretudo, à escolha do corpo para representar as deformações e impurezas da alma. A consideração de que a doença constitui uma metáfora orgânica da perversão é fundamental para que se compreenda o universo de Augusto dos Anjos.
Outro ponto importante no poema é a referência à aberração como gérmen, “estado inicial e rudimentar de um organismo”, que no contexto poemático de Augusto se confunde com a espécie humana. O fato de estar “no início” ratifica a ligação desse mal com a pecha de origem, a peçonha (metonímia da serpente) incriminadora de todos nós. O ser humano seria então aberrante por, no rastro de Adão, haver transgredido uma ordem divina.
A melancolia já foi incluída entre os pecados capitais. Confundia-se com a acedia, que costumava acometer os monges nos mosteiros do Medievo e os tornava apáticos, pouco produtivos e por vezes descrentes. Essa imputação pecaminosa foi há muito deixada de lado, mas ainda permanecem reflexos dela hoje; há quem, alheio às contribuições da psicologia e da neuroquímica, considere os melancólicos e depressivos como pecadores. Nada mais injusto. Como tachar de pecaminoso algo que é antes uma expiação do que um desfrute?
Aberração, doença, prostituição, satiríase são no universo poético de Augusto representações corporais de um mal que se radica no espírito. A pecha da “falta original” faz com que o eu lírico sonhe com outra humanidade – mas antes é preciso que a morte promova a destruição do homem antigo.
Em sua dimensão pulsional, a morte é segundo Lacan uma “sublimação fundamentalmente criacionista”. Identificada pela psicanálise como “princípio de Nirvana”, ela promove a quietude, a extinção das tensões vitais, mas também antecipa o renascimento e a renovação. Tal anseio do novo (um novo homem, não maculado pela “falta”) o eu lírico augustiniano expressa no final de “Os Doentes”, título que metaforicamente expressa a nossa condição:
E eu, com os pés atolados no Nirvana,
Acompanhava, com um prazer secreto,
A gestação daquele grande feto,
Que vinha substituir a Espécie Humana!