Começo esse meu depoimento dizendo que Seu Chico era meu pai e Dona Iracema, minha mãe. Pois ela, neste final de ano, por pouco, um pouquinho mesmo não me deixou órfão sem ninguém para me proteger e me ensinar a trilhar os bons caminhos. Que mês triste o de dezembro, quando dia após dia fui, perdendo um ente querido. Primeiro se foram meus irmãos Vigilante, Sivuca e Trovão, Depois meu pai e em seguida mais quatro dessa prole infeliz: Bernadete, Ceminha, Damião e Cachoeira. Escapamos: Gracinha, Tadeu e eu, caçula dessa ninhada e como já disse, minha mãe que também não foi à degola. Sou o Miúdo.
Não sei se perceberam pela prole numerosa ou por mera dedução que se a tragédia que chegou vigorosa sobre minha família ocorreu bem no finalzinho do ano, deveríamos ser uma família de porcos. Isso mesmo, pensando de um jeito ou de outro a conclusão correta é essa.
Peço minhas desculpas, por estar em tempos de confraternização quando as famílias comemoram, entre outras coisas, as artes do encontro e do viver e eu cá apareço com minhas tristezas e aflições. É porque vocês podem ter uma cumplicidade pequenina em minha desdita. Terminando essa leitura verão que têm.
Nasci no Sitio de seu Waldemar e de Dona Cotinha. É uma propriedade produtiva aqui na Serra da Canastra e é desse pedaço de terra que a família tira seu sustento. Lavoura de milho, mandioca, batata doce, inhame, amendoim e hortaliças, tudo com trato orgânico para que se tenha boa aceitação no mercado. Se não errei nas contas, sempre têm pelo menos vinte vacas em lactação e umas dez cabras produzindo leite de qualidade Construíram próximo aos currais uma queijaria, onde o agregado Tião e a esposa Marinalva cuidam da produção de um dos melhores queijos da região. Não nos esqueçamos dos ovos caipiras onde as poedeiras são criadas a pasto.
Não posso esquecer que nós, os porcos, somos o complemento de renda dessa família. No chiqueiro de duas baias e coberto com telha de amianto vivemos nós, Quem cuida desse segmento é o Valtinho de 12 anos, também caçula de Seu Waldemar e Dona Cotinha. Nesta minha história vou deixar de lado a plantação e outros bichos, outras gentes. Fiquemos só com minha família, Seu Waldemar e Valtinho.
Juntaram meu pai e minha mãe em maio deste ano quando Dona Iracema entrou no cio. Segundo Valtinho, foi o casal mais bonito da propriedade nem a égua tordilha Sininho e o alazão Guerreiro faziam frente à boniteza de meu pai e minha mãe; é o que dizia Valtinho. Passados os cento e quatorze dias protocolares, veio à luz uma ninhada sadia de dez leitãozinhos de muita graça e belezura. Fui o último a ser parido e nasci com menos que um quilo, enquanto que o primeiro a chegar ao mundo, o Sivuca, já veio com quase dois. Daí eu ser batizado de Miúdo.
Quem nos tratava com esmero e dedicação foi, como já mencionei, Valtinho, que nos batizou um a um. Nem bem aparecia o Sol no alto daquela serra e já estava ele firme na lida. De princípio acomodava os filhotes para amamentação, eu o menorzinho pegava-me ao colo até que garimpasse uma teta de sobra para que eu me alimentasse. Depois do desmame servia-nos ao cocho lavagem misturada à ração para que ao nascer do Sol já estivéssemos soltos em um dos piquetes destinado a nossa ninhada e era quando voltámos a nos encontra com Seu Chico.
Como eram doces aqueles momentos. Acostumávamos aos chamados de Valtinho creio que se foi criando entre nós e ele um inexplicável laço de benquerença. Mas para nossa infelicidade, e a dele também, dezembro tinha de chegar quando, nós, as crias, já havíamos chegado à metade do nosso peso ideal Vieram os fregueses e iam nos escolhendo quando seu Waldemar já fazia a indagação aterrorizante: se o freguês queria o leitão limpo ou inteiro. Sempre nos queriam limpos e devidamente tratados.
O primeiro a ser levado foi Vigilante, Tiraram-no de nós e ali pertinho, às nossas vistas, vimos e ouvimos sua agonia, seus gritos de desespero diante da morte que nem sempre vinha com a primeira cutelada. Valtinho chorava, criara estima por nós. Seu pai ralhava com ele: “Para de viadagem, a gente vive disso.” Assim foram indo Sivuca, Trovão e depois meu pai com seus quase duzentos quilos, a mais demorada das mortes e a que mais me amedrontou. Valtinho fugiu para não ver. O último a ser sacrificado na sequência foi Cachoeira. Foi nessa hora que o menino me pegou ao colo como quisesse me proteger. O patriarca não gostou da atitude de meu protetor e foi logo dizendo: “A porca vou guardar pra próxima ninhada Na vez desse pequenino aí é você quem vai matar o bicho para eu ver meu filho ganhando macheza.”