Há pessoas que começam a ter uma crise de urticária, à simples menção da palavra disciplina. Assim como espelunca não é espelunca e anjo não é anjo, disciplina não é disciplina. Explico-me. A palavra espelunca é a forma latina (spēlunca) para caverna, proveniente do grego spelunks (σπῆλυγξ), cuja raiz (σπήλ-, de σπήλαιον) se encontra no termo erudito espeleologia, a ciência que estuda as cavernas.
Na literatura latina, podemos ver que o encontro amoroso entre Dido e Eneias, tramado pelo conluio entre Vênus, a deusa mãe do herói, e Juno, a deusa que o persegue, se dá numa caverna, à qual ambos se dirigem, tendo a rainha como guia (Speluncam Dido dux et Troianus eandem deueniunt, Eneida, Livro IV, versos 165-166), de modo que ambos escapem ao temporal enviado pelas divindades, no momento em que o casal estava numa caçada (idem, versos 160-172). Temporal forjado pelas duas, apesar de promover o encontro da rainha de Cartago com o rei Troiano, tem intenções diferentes, como veremos a seguir.
Juno, na sua ira persecutória, quer retardar ou desviar, definitivamente, o herói de seu destino anunciado: fundar e construir uma nova Troia, tão ou mais poderosa que a anterior. Daí, ela aceitar a proposta de Vênus, de aproximar o casal pelo amor, usando o pequeno Cupido, transmudado com as feições de Ascânio, o pequeno filho de Eneias, tomado no colo por Dido. Desse passo, para o amor na caverna, foi só uma questão de tempo, ainda que a rainha relutasse muito, por conta da fidelidade jurada a Siqueu, o marido morto. Juno espera que Eneias, cedendo aos encantos de Dido, permaneça em Cartago e se desvie do que o Fado lhe reservara.
A intenção de Vênus é bem outra. A deusa da beleza e do amor deseja apenas que Eneias descanse, ao chegar em Cartago, após sete anos de viagens e errâncias, por terra e por mar, desde a destruição de Troia e da sua fuga ordenada pelos deuses, dentre eles a própria Vênus, que o adverte para a inexorável queda da cidade. Vênus sabe das intenções de Juno, mas a recíproca não é verdadeira. Como sabemos, o amor de Eneias por Dido, iniciado na espelunca, não é suficiente para suplantar a força do destino, e os deuses o obrigam a deixar a rainha, que se suicida, ao ver o amante partir.
Vê-se aí, portanto, que o termo espelunca, na atualidade, evoluiu de caverna, e mais a caverna que abrigou um amor mítico, inspirado por divindades olímpicas, para um sentido pejorativo, de lugar execrável, sujo e mal frequentado, podendo até ser um covil para bandidos... Mesmo quando usado com o significado de caverna, tout court, o termo não consegue mais deslocar de si o sentido depreciativo.
O mesmo acontece com a palavra anjo. Anjo não é anjo. As línguas evoluem, nem sempre para melhor, mas para o possível e atendendo, primeiramente, às exigências de um senhor poderoso e déspota, chamado uso. Anjo é a forma portuguesa de angĕlus, em latim, proveniente do grego ἄγγελος, cujo sentido é o de mensageiro. É desse modo que Hermes, o mensageiro de Zeus (ἄγγελος Διός) é enviado, seja na Odisseia, Canto X, para obrigar Ulisses/Odisseu a deixar o palácio de Circe e continuar a sua viagem de volta para Ítaca, após passar ali um ano; seja na Eneida (Livro IV), com o nome latino de Mercúrio, para avisar a Eneias que já é hora de partir de Cartago e deixar as delícias do palácio de Dido, voltando à sua obrigação de fundar uma nova cidade tão gloriosa quanto Troia foi, desta feita no Lácio.
Tanto no grego como no latim, anjo significa mensageiro, que pode ser dos deuses ou não; pode ser uma divindade ou um simples mortal, sem qualquer conotação de bem ou de mal. É aquele que porta uma mensagem, que pode ser boa ou má, divina ou mundana. Apenas isso. É a partir do Velho Testamento e, sobretudo, do Cristianismo, que o propaga, que anjo assume uma concepção de entidade divina.
Sejamos, contudo, disciplinados, após essa pequena digressão, e retornemos ao que significa o termo disciplina.
Em sua origem, o termo não tem relação com o seu sentido atual de rigidez férrea ou de punição, atribuído por determinado uso e a que alguns têm tanta aversão. Mesmo que alguns estudiosos procurem uma relação de disciplina (disciplina, ae) com o verbo discipĭo, discipĕre, cujo sentido é o de pegar (capio, capĕre) e separar (dis), fico com as ponderações de Alfred Ernout, em seu Dictionnaire Étymologique de la langue latine. O eminente filólogo diz ser disciplina inseparável do termo discipŭlus (discípulo) e do verbo disco, discĕre, com o sentido de aprender, sendo, portanto, a obrigação de todo aquele em fase de aprendizagem, submeter-se a uma ordenação, sem a qual não se atinge o objetivo desejado, qual seja a busca de um conhecimento sólido. Não se diminua ou se restrinja, portanto, o sentido de disciplina a castigo, como comumente se faz, significado que resultou de uma contaminação com os castigos corporais que se aplicavam nas escolas.
Como podemos ver, a etimologia nos ajuda a conhecer melhor as palavras e os processos de sua mudança, através dos tempos. Desse modo, a expressão água líquida não constitui, necessariamente, um pleonasmo ou traduz um dos estados da água na natureza. É apenas, seguindo a boa etimologia, uma maneira de falar da translucidez, clareza ou transparência desse precioso... líquido.