Há pessoas que começam a ter uma crise de urticária, à simples menção da palavra disciplina . Assim como espelunca não é espelunca e...

Viva a Etimologia!

mitologia eneida etimologia
Há pessoas que começam a ter uma crise de urticária, à simples menção da palavra disciplina. Assim como espelunca não é espelunca e anjo não é anjo, disciplina não é disciplina. Explico-me. A palavra espelunca é a forma latina (spēlunca) para caverna, proveniente do grego spelunks (σπῆλυγξ), cuja raiz (σπήλ-, de σπήλαιον) se encontra no termo erudito espeleologia, a ciência que estuda as cavernas.

Na literatura latina, podemos ver que o encontro amoroso entre Dido e Eneias, tramado pelo conluio entre Vênus, a deusa mãe do herói, e Juno, a deusa que o persegue, se dá numa caverna, à qual ambos se dirigem, tendo a rainha
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Dido e Eneias durante a tempestadeJ. Albert, S.XIX
como guia (Speluncam Dido dux et Troianus eandem deueniunt, Eneida, Livro IV, versos 165-166), de modo que ambos escapem ao temporal enviado pelas divindades, no momento em que o casal estava numa caçada (idem, versos 160-172). Temporal forjado pelas duas, apesar de promover o encontro da rainha de Cartago com o rei Troiano, tem intenções diferentes, como veremos a seguir.

Juno, na sua ira persecutória, quer retardar ou desviar, definitivamente, o herói de seu destino anunciado: fundar e construir uma nova Troia, tão ou mais poderosa que a anterior. Daí, ela aceitar a proposta de Vênus, de aproximar o casal pelo amor, usando o pequeno Cupido, transmudado com as feições de Ascânio, o pequeno filho de Eneias, tomado no colo por Dido. Desse passo, para o amor na caverna, foi só uma questão de tempo, ainda que a rainha relutasse muito, por conta da fidelidade jurada a Siqueu, o marido morto. Juno espera que Eneias, cedendo aos encantos de Dido, permaneça em Cartago e se desvie do que o Fado lhe reservara.

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Dido recebe Eneias e Cupido (disfarçado de Ascânio)G. Tiepolo, 1757
A intenção de Vênus é bem outra. A deusa da beleza e do amor deseja apenas que Eneias descanse, ao chegar em Cartago, após sete anos de viagens e errâncias, por terra e por mar, desde a destruição de Troia e da sua fuga ordenada pelos deuses, dentre eles a própria Vênus, que o adverte para a inexorável queda da cidade. Vênus sabe das intenções de Juno, mas a recíproca não é verdadeira. Como sabemos, o amor de Eneias por Dido, iniciado na espelunca, não é suficiente para suplantar a força do destino, e os deuses o obrigam a deixar a rainha, que se suicida, ao ver o amante partir.

Vê-se aí, portanto, que o termo espelunca, na atualidade, evoluiu de caverna, e mais a caverna que abrigou um amor mítico, inspirado por divindades olímpicas, para um sentido pejorativo, de lugar execrável,
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Mercúrio (Hermes) exorta Eneias a deixar CartagoG. Tiepolo, 1757
sujo e mal frequentado, podendo até ser um covil para bandidos... Mesmo quando usado com o significado de caverna, tout court, o termo não consegue mais deslocar de si o sentido depreciativo.

O mesmo acontece com a palavra anjo. Anjo não é anjo. As línguas evoluem, nem sempre para melhor, mas para o possível e atendendo, primeiramente, às exigências de um senhor poderoso e déspota, chamado uso. Anjo é a forma portuguesa de angĕlus, em latim, proveniente do grego ἄγγελος, cujo sentido é o de mensageiro. É desse modo que Hermes, o mensageiro de Zeus (ἄγγελος Διός) é enviado, seja na Odisseia, Canto X, para obrigar Ulisses/Odisseu a deixar o palácio de Circe e continuar a sua viagem de volta para Ítaca, após passar ali um ano; seja na Eneida (Livro IV), com o nome latino de Mercúrio, para avisar a Eneias que já é hora de partir de Cartago e deixar as delícias do palácio de Dido, voltando à sua obrigação de fundar uma nova cidade tão gloriosa quanto Troia foi, desta feita no Lácio.

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Eneias despede-se de Dido, em CartagoC. Lorrain, 1675
Tanto no grego como no latim, anjo significa mensageiro, que pode ser dos deuses ou não; pode ser uma divindade ou um simples mortal, sem qualquer conotação de bem ou de mal. É aquele que porta uma mensagem, que pode ser boa ou má, divina ou mundana. Apenas isso. É a partir do Velho Testamento e, sobretudo, do Cristianismo, que o propaga, que anjo assume uma concepção de entidade divina.

Sejamos, contudo, disciplinados, após essa pequena digressão, e retornemos ao que significa o termo disciplina.

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EneiasG. Tiepolo, 1757
Em sua origem, o termo não tem relação com o seu sentido atual de rigidez férrea ou de punição, atribuído por determinado uso e a que alguns têm tanta aversão. Mesmo que alguns estudiosos procurem uma relação de disciplina (disciplina, ae) com o verbo discipĭo, discipĕre, cujo sentido é o de pegar (capio, capĕre) e separar (dis), fico com as ponderações de Alfred Ernout, em seu Dictionnaire Étymologique de la langue latine. O eminente filólogo diz ser disciplina inseparável do termo discipŭlus (discípulo) e do verbo disco, discĕre, com o sentido de aprender, sendo, portanto, a obrigação de todo aquele em fase de aprendizagem, submeter-se a uma ordenação, sem a qual não se atinge o objetivo desejado, qual seja a busca de um conhecimento sólido. Não se diminua ou se restrinja, portanto, o sentido de disciplina a castigo, como comumente se faz, significado que resultou de uma contaminação com os castigos corporais que se aplicavam nas escolas.

Como podemos ver, a etimologia nos ajuda a conhecer melhor as palavras e os processos de sua mudança, através dos tempos. Desse modo, a expressão água líquida não constitui, necessariamente, um pleonasmo ou traduz um dos estados da água na natureza. É apenas, seguindo a boa etimologia, uma maneira de falar da translucidez, clareza ou transparência desse precioso... líquido.

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  1. O mestre sempre nos brindando com saberes. Parabéns, Milton. Francisco Gil Messias.

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  2. Obrigado, Gil!

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