Talvez a pergunta que se deva fazer seja: como pode alguém se tornar um dos maiores poetas de todos os tempos com apenas 18 anos (sua obra prima Une Saison en Enfer foi lançada em 1873), consignar uma intensa militância poética por cinco anos em Paris, e, depois, abandonar tudo para se tornar, inclusive, traficante de armas na África, sobreviver a amputação de uma perna, para, enfim, sucumbir vítima de um câncer?
Porque, muito provavelmente, Rimbaud, e é de Arthur que estamos tratando, cumpriu o primeiro ritual de um poeta, que é conhecimento de si mesmo, inteiro, sem hipocrisia, sem civilização. Rimbaud vai prospectar sua alma, e com ela apreender o mistério das portas do mundo. Ele sabe, ele cultiva as sementes que encontrou nessa travessia. E, então, seguir como poeta talvez seja sempre uma simples fatalidade.
E já adianto as próprias palavras de Rimbaud, em carta de 1871 ao poeta Paul Demeny, que sinalizam e direcionam o principal vértice de seu conceito sobre poesia, ou pelo menos sobre a sua poesia:
“O poeta se faz vidente por um longo, imenso e pensado desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura; ele busca a si mesmo, ele exaure em si mesmo todos os venenos, para então guardar apenas as quintessências. Inefável tortura na qual necessita de toda a fé, toda a força sobre-humana, onde ele se torna entre todos o grande doente, o grande criminoso, o grande maldito, — e o supremo sábio! — pois ele chega ao desconhecido!”
Rimbaud, lembremos, foi abandonado pelo pai, um militar condecorado, ainda em criança, criado por uma mãe repressora, que aparenta mais apreço pelos outros filhos. Uma situação tóxica para quem poderia ter, digamos, alma de poeta, além de uma rejeição sem o concurso de um pai. Deleuze e Guattari irão postular, em “O que é filosofia” (2010), como,
em determinadas pessoas, não há outra saída para sair do ignóbil a não ser agir como um animal, que rosna e convulsiona-se. E arremata, pontuando como “a arte ergue os monumentos.”RIMBAUD, 1871
E o que é poesia, nesta perspectiva, e sob a obra de Rimbaud, senão um enclave de metáforas, ironias e até mesmo paradoxos, para expressar um monumento de ideias, pensamentos e emoções, além de provocar reflexão?
Neste contexto e com essas interpretações, é possível encontrar consistência em estudos realizados pelo psiquiatra Jésus Pujol, advogando como um estresse reiterado em idade precoce pode levar o sujeito à maturação emocional prematura, como um mecanismo de defesa, e conduzir a um bloqueio para fugir do sofrimento e, simultaneamente, transformar o sujeito numa pessoa que busca anestesiar seus afetos mais caros. Nesse caso, usando a poesia como arma e como negação do sofrimento ou expressão deste.
Mas, sua biografia não se inscreveria nessa insanidade de desvendar os enigmas do mundo, sem o tempestuoso romance com o poeta Verlaine, algo que dominou a cena literária numa Paris ainda conservadora. E, sabemos, a relação terminou com uma agressão a tiros (em sua mão de poeta!), no Hotel de la Ville-de-Courtrai, na Bélgica, o que culminou com a prisão de Verlaine. Então, alguns meses após a liberdade de Verlaine, eles se encontram uma última vez, na Alemanha, e Rimbaud lhe entrega os poemas de “Iluminações”, para, em seguida, abandonar a poesia e partir em viagens pelo mundo.
Apesar do episódio tão vexatório, Verlaine haveria de evocar algumas boas lembranças com o poeta maldito. Num texto de 1895, “Novas notas sobre Rimbaud”, Verlaine lembrou com certa nostalgia:
“Ele me contava tudo isso em longos passeios em volta de Montmartre, e mais tarde nos cafés do bairro Trudaine e no Quartier Latin... e depois ele não fez mais nada a não ser viajar terrivelmente pelo mundo e morrer muito jovem”.
No poema “A canção da torre mais alta”, Rimbaud externa como uma premonição:Eu disse a mim: cessa
Que eu não te veja:
Nenhuma promessa
De rara beleza.
E vá sem martírio
Ao doce exílio”.
Ao doce exílio? No poema “Sensação” parece completar este desígnio:
Não falarei mais,
Não pensarei mais:
Mas um amor infinito me invadirá a alma.
E irei longe, bem longe,
Como um boêmio.
Rimbaud, ainda poeta (porque evidentemente nunca pode deixar de ser, e essa era a sua maldição), mas afastando-se da poesia, irá abandonar sua mãe, os amigos, professores, Verlaine e reforçará a fama de enfant terrible, tentando fugir de seu carma, numa vã tentativa de encontrar lenitivo na busca de uma fortuna que, eventualmente, pudesse mitigar seu desespero e suas perdas. Rimbaud foi tomado pela loucura e alguns desavisados ainda irão se indagar se a loucura terá se instalado no Rimbaud enquanto poeta, ou quando abandonou a poesia.
Em “Loucura, literatura e sociedade”, Michel Foucault irá estabelecer essa relação entre poesia e loucura, e dirá que loucura é “nada mais, sem dúvida, do que a ausência de obra”, e abre perspectiva para se questionar onde precisamente acaba a obra e onde se inicia a loucura.
Na tentativa de compreender a alma de Rimbaud, o também poeta e dramaturgo Paul Claudel chegou a classificá-lo como “um místico em estado selvagem”. O escritor Arthur Miller, que tanto entendia da sua obra, identificou o poeta como “a última palavra do desespero, da revolta e da maldição”. O igualmente maldito Jack Kerouac, num longo poema, tratou Rimbaud como um “degenerado suspeito de ser poeta”.
No poema “Noite do inferno”, Rimbaud parece revelar sua dor de autoflagelação: “Um homem que quer se mutilar, está condenado, não é?”. E adiante, sua consciência de perda: “E pensemos em mim. Isso me leva a ter pouca saudade do mundo. Tenho a possibilidade de não sofrer mais. Minha vida não passou de doces loucuras, é lamentável.”
No poema “Vidas”, do livro Iluminuras, Rimbaud verseja “Espero tornar-me um louco muito mau”. Uma “maldade” que talvez se corporificasse na negação do ato de criação ou, no inverso, como sendo o ato criador uma subversão, por si só um lapso de loucura, sem a qual não teria conseguido compor a vida e a obra que realizou.
Mas, a poesia de Rimbaud poderia ser também, para além da entrelace com a loucura, uma vereda que trilha para tentar traduzir sua vivência dolorosa e oferecer um sentido, ou o não-sentido, mais aceitável para a crueza e crueldade do mundo, e se estabelecer como personagem neste novo modo de existir, a partir de sua poética dolorosamente particular.
Ele ainda será consciente de seus atos, como só os loucos têm essa percepção, mas poderá agir tomado por um bloqueio da associação entre emoção e cognição ao tomar suas decisões. Afinal, Rimbaud enfrentou a perda do pai e um misto de indiferença e repressão de parte da sua mãe. Sofreu o inverso do que seria esperado. Houve, na verdade, uma frustração dessa relação que deveria ser representada na perda da conjugação entre mãe e filho, algo que, em condições normais, simboliza-se com a presença do pai, como agente das fantasias vinculadas a essa perda.
É o pai que corporifica essas faculdades onde os desejos objetais são envelopados pelos contornos simbólicos, da fantasia, do imaginário, como propõe Lacan. Há, portanto, uma falha nessa história particular de Rimbaud. Jacques Lacan irá observar que, sob a neurose, é possível sobrevir a fascinação da poesia ante a falha materna. É nesse contexto que, presumidamente, poderia se expressar a militância poética de Rimbaud.
Mas, uma fascinação que, aparentemente, se constroi e, então, também se desconstroi e sucumbe ante o trágico desfecho de sua vida de aventuras e desventuras. Finalmente, esta relação poderia simbolizar, sob certas circunstâncias, ou sob a tais circunstâncias que vivenciaram, o pai perdido na infância e por ele ferido duas vezes: com seu desaparecimento em criança e sua agressão física nas mãos que urdiram e teceram sua poética.
Então, se “o poeta se faz vidente por um longo, imenso e pensado desregramento de todos os sentidos”, é esse desregramento e essa loucura que se irão se inscrever de forma indelével na poética de Rimbaud. E se o poeta conseguiu com sua loucura abrir as portas do mundo, ele traduziu essa descoberta numa obra única, porquanto subversiva, desregrada e insana, enquanto anárquica. Como anárquica deve ser toda a poesia.