A Mirabeau e Suely Dias
Encontrava-me em Braga, em pleno Sábado de Aleluia, quando, diante da Igreja de Santa Cruz, deparei-me com o dístico latino, insculpido em seu frontispício:
Vexilla Regis prodeunt
Fulget Crucis mysterium
Os estandartes do Rei avançam
Fulge o mistério da Cruz
O Nono Círculo do Inferno é o último, na Commedia de Dante. Igualmente aos dois anteriores, o Sétimo e o Oitavo, trata-se de um espaço mais complexo que os demais, vez que aumentam as penas e os condenados, à medida que os dois poetas, Dante e Virgílio, vão descendo ao ponto central da sua viagem pelo reino de Dite, “o imperador do doloroso reino” (Lo ‘mperador del doloroso regno, Canto XXIV, verso 28).
Inferno, Canto XXIV: Os ladrões são atormentados por serpentes ▪ Ilustração: Gustave Doré, 1885
O Oitavo Círculo, por sua vez, denominado de Malebolge, o círculo das Maus Bolsões, é dividido em dez fossos concêntricos, onde se pune uma miríade de fraudulentos, como os rufiões, sedutores, aduladores, simoníacos, adivinhos e magos, corruptos e malversadores dos bens públicos, hipócritas, ladrões, conselheiros fraudulentos, semeadores de discórdia,
Inferno, Canto XVIII: Dante e Virgílio observam os sedutores e os aduladores no Oitavo Círculo ▪ G. Doré, 1885
O Nono Círculo apresenta estrutura similar de complexidade, tendo em vista que se divide em 4 Zonas – Caína, Antenora, Ptolomeia e Judeca –, abrangendo os últimos 3 Cantos, do XXII ao XXIV. Nesse Círculo se punem, de maneira geral os traidores, divididos em traidores dos parentes, da pátria, dos hóspedes e dos benfeitores. É também aí que acontece o fim da jornada de Dante e Virgílio pelo Inferno, que dura exatamente 1 dia, da Sexta-Feira da Paixão, 8 de abril de 1300, ao Sábado de Aleluia, 09 de abril, no hemisfério Norte; ou do Sábado de Aleluia, 9 de abril, ao Domingo de Páscoa, 10 de abril, no hemisfério Sul, na configuração astronômica ptolomaica da época.
Quando computadas todas as subdivisões dos nove círculos, que acontecem a partir do sétimo, o Inferno compreende 23 locais de punição, um mais profundo do que outro, sem contar com o Vestíbulo (Canto III), onde estão os ignavos, aqueles que perderam o grande bem do intelecto, a verdade, como diz Virgílio a Dante: “Nós viemos ao local onde eu te disse/que verás as pessoas desventuradas/que perderam o bem do intelecto” (Noi siam venuti al loco ov’ i’ t’ho detto/che tu vedrai le genti dolorose/c’hanno perduto il ben de l’intelletto, versos 16-18).
Inferno, Canto III: As almas condenadas embarcam no rio Acheron ▪ G. Doré, 1885
Inferno, CantoXXXIV: Lúcifer congelado no inferno ▪ G. Doré, 1885
No seu processo de construção, que envolve uma complexa rede de intertextualidade e transtextualidade, Dante se utiliza dos versos iniciais do “Hino à Cruz” – Vexilla Regis prodeunt/Fulget Crucis mysterium –, a que nos referimos acima, composto no século VI,
Dante e VirgílioR. Flores, 1855
Dante e Virgílio precisam desse encontro, por mais estarrecedor que pareça ser. Quando Lúcifer é punido, ele cai diretamente do Céu no Inferno, ficando, dos quadris para baixo, congelado no Cocito, movimentando apenas a horripilante parte superior de seu corpo gigantesco de três caras e asas descomunais. Dante e Virgílio têm que usar os pelos do corpo da “criatura que teve o belo semblante” (la creatura ch’ebbe il bel sembiante, verso 18), para atingir o centro da terra, onde ocorrerá a inversão dos hemisférios. O objetivo é encontrar a montanha do Purgatório, cuja formação resultou do deslocamento da massa rochosa com a queda de Lúcifer, na região onde se pune eternamente o mal. Descer e subir pelo corpo de Lúcifer é a única saída do Inferno, cujo resultado traz uma visão inesperada: a troca de hemisfério fez Lúcifer ser visto com
Inferno, Canto XXXIV: Lúcifer enterrado no inferno ▪ Fonte: Ferrara, 1474–1482, Biblioteca do Vaticano
A última experiência de Dante é, de fato, horripilante. Não só porque a descrição física de Lúcifer, que “se foi tão belo, como agora é feio” (S’el fu sì bel com’elli è ora brutto, verso 34), nos remete a uma síntese de dois monstros mitológicos, cada um com as suas três cabeças terríveis, Cérbero, o guardião do inferno, e Cila, moça punida pela sua beleza e transformada em monstro aterrador e devorador dos navegantes que fazem a travessia do Estreito de Messina. No caso de Lúcifer, ele apresenta duas faces laterais à face principal, utilizando-as tal qual Cila (Odisseia, Canto XII), para dilacerar os três principais condenados à Judeca – Judas Iscariotes, Bruto e Cássio –, todos traidores dos seus benfeitores, sendo ele mesmo, Lúcifer ou Dite, o traidor de Deus. Punem-se, portanto, as traições a Jesus e a Júlio César – que representam a Religião e o Estado –, do mesmo modo que a imobilidade de Lúcifer, destinado a punir infinitamente os que ali se encontram, é uma punição a si próprio, por ter traído o seu criador. Imobilidade inquietante nas sombras, pela etimologia de seu nome que indica uma mobilidade contínua – Lucĭfer, o que porta a luz.
Lúcifer ▪ O anjo caído Alexandre Cabanel, 1847
Se ele foi tão belo como é agora feio,
e contra o seu criador alçou os olhos,
bem dele deve proceder todo o luto.
S’el fu sì bel com’elli è ora brutto,
e contra ‘l suo fatore alzò le ciglia,
bem dee da lui procedere ogne lutto.
Há muito o que se falar desse Canto XXXIV, mas fiquemos por aqui, mostrando a oposição que existe entre a traição/ingratidão, no último Círculo do Inferno,
Inferno, Canto XXXIV:Os poetas emergem do inferno ▪ G. Doré, 1885
A visão inesperada, em Braga, só me reafirmou como Dante é grande.