Carta ao meu querido amigo e confrade, José Nunes. Uma das imagens, Nunes, que tenho guardadas na memória, do período da minha i...

Professor, nada mais

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Carta ao meu querido amigo e confrade, José Nunes.

Uma das imagens, Nunes, que tenho guardadas na memória, do período da minha infância, é com um quadro negro, quadrado, medindo 1x1, na cabeça, e uma caixa de giz com apagador, em uma das mãos, indo dar aula particular de francês, perto da casa onde eu morava.

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Professora Alaíde Chianca ▪ 1917—2022
Eu tinha 11 anos de idade, acabara de entrar na Escola Industrial Federal da Paraíba, após ter sido aprovado no temido Exame de Admissão ao Ginásio. Na primeira aula de francês, com a minha inesquecível professora Alaíde Chianca, decidi que queria ser professor, e professor de francês.

Eu morava na Avenida Coremas, bem perto da Maternidade Cândida Vargas, onde nasci e da qual minha mãe era parteira diplomada. Entre a maternidade e a minha casa, que ficava a duas casas da Rua Alberto de Brito, situava-se a Vila Santa Luzia, cujos costados terminavam num alto muro, separando-a da vetusta Faculdade de Medicina.

Por algum motivo, que eu não sei explicar, espalhou-se que eu estudava francês. A partir da Escola Industrial, vendo o meu gosto pela língua, minha mãe me matriculou na Aliança Francesa, que, na época tinha o nome de Associação Cultural Franco-Brasileira, com sede na Lagoa, onde hoje se encontra um banco. Tendo se espalhado a notícia, recebi a proposta de uma amiga de minha mãe, também parteira, para ensinar francês à sua filha. Foi assim que começou a minha carreira de professor.

Acredito mesmo, meu amigo, que não há profissão mais gratificante e mais envolvente do que a de professor, apesar das dificuldades por que todos passamos, quando a abraçamos.
Fiz o curso de Letras, na Universidade Federal da Paraíba, escolhi a habilitação em Língua Portuguesa e Língua Francesa, e quis o destino, em sintonia com o meu desejo de ser professor de francês, que a Aliança Francesa, em 1977, onde acabara de ser habilitado com o CEPAL – Certificado de Estudos Práticos da Aliança –, me enviasse para um curso de 15 dias, nas Alianças Francesas do Rio de Janeiro, para aprender o novo método áudio-visual, que se lançava na ocasião, o De Vive Voix. Na volta, cumpriu-se o que eu havia desejado aos 11 anos de idade: era professor da Aliança Francesa de João Pessoa, o primeiro a aplicar o novo método na Paraíba. Daí, para cá, procurei consolidar a minha carreira de professor, passando por todos aqueles estágios da Leçon,
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Professor Roland Barthes ▪ 1915—1980
de Roland Barthes: ensina o que não sabe, ensina o que sabe, e desaprende o que sabe, para criar novos ensinamentos.

Sou, portanto, professor, nada mais. Se alguém quiser me fazer a maior das deferências, não procure palavras bonitas, basta me chamar Professor. É por isso, meu amigo José Nunes, que eu insisto em dizer que não sou escritor. Na minha concepção, o que nos define profissionalmente é aquele exercício diário do qual retiramos nosso sustento. Há quase cinquenta anos desempenho profissionalmente a atividade de professor e nem a aposentadoria me retirou dela. Professor é uma essência, não uma situação efêmera. É algo substancial. Não se trata, em hipótese alguma, de acidente de percurso. Decidi ser professor e continuarei a sê-lo por toda a minha vida, em todas as circunstâncias.

Como não me sustento, meu amigo Nunes, do que escrevo, mas da minha atuação no Magistério, não sou escritor. Digo sempre que não sou o escritor que ministra aulas, mas o professor que escreve. E o que escrevo é oriundo e destinado à sala de aula. Escrevo pensando na minha profissão. Os artigos, ensaios, teses, muitas vezes reunidos em livros, são um efeito colateral bom da minha profissão. Ao contrário do poeta, do romancista, do teatrólogo, os meus livros não existem como finalidades,
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mas como instrumentos para uma melhor realização da minha profissão.

Abro uma exceção para o livro de poemas satíricos e epigramáticos – Epigrammaton –, que é, na realidade, um exercício do que aprendi na profissão lendo os poetas latinos Catulo e Marcial, lendo Bocage e o nosso brasileiríssimo Gregório de Matos. É exercício de forma, com um conteúdo crítico que faz parte de minha personalidade. Ainda assim, trata-se de um livro cuja finalidade foi criar um verso, o heptassílabo duplo, inédito na nossa versificação, para efeito de tradução dos epigramas latinos e gregos.

Acredito mesmo, meu amigo, que não há profissão mais gratificante e mais envolvente do que a de professor, apesar das dificuldades por que todos passamos, quando a abraçamos, por estarmos num país que pouco se interessa pela educação como real processo de transformação social. Apesar da desvalorização que enfrentamos no dia a dia, sempre acreditei que valia a pena ser professor, contribuindo, um mínimo que seja, para alguma mudança.

Há quem acredite, meu amigo, em palavrório sem ação. Eu acredito em ação sem palavrório; ação que, sobretudo, ensine a ler e a escrever,
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condição sine qua non, para que possamos nos libertar da opressão da ignorância que nos assola.

Sendo assim, meu amigo Nunes, agradeço o seu texto, nascido de uma frase que eu disse em pleno exercício da profissão. Comovo-me com a sua compreensão de que sem professores nada poderemos fazer e não adiantarão as manifestações falsas e inócuas dos falastrões.

Ser professor para mim, meu amigo, é algo que o grego conceituou como anánke (ἀνάγκη), necessidade, e a necessidade só nos empurra para a frente. Numa terra em que o mau bacharelismo dos lusitanos prevalece como herança deletéria e onde a palavra “doutor”, por ter sido banalizada, nada diz, ser o único profissional a ser chamado pela sua profissão – Professor! – é, a um só tempo, uma honra e um reconhecimento que demonstram, de modo inequívoco, a sua importância na sociedade, ainda que os desgovernantes não a reconheçam, por só estarem preocupados consigo próprios.

Ser professor, meu amigo, é visceral, e a emoção e a magia da sala de aula não se negociam e não se trocam por escritor, nome largo e, muitas vezes, esvaziado de sentido.

Grande abraço,

Milton

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  1. Obrigado, professor. Duas palavras me comoveram.

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  2. Milfa Valério10/11/24 11:04

    Meu amado Professor,
    este foi o texto que mais me emocionou, porque o revela. Aqui, você está vivo e falando daquilo que lhe dá vida. E que faz de você um ser inteiro, verdadeiro, fiel a si mesmo, ao que ama e ao que o distingue, com marca indelével.
    Emocionei- me porque sempre vi em você esse professor, essa entrega a um fazer bonito, constante e honroso. Daí, chamá- lo amorosa e respeitosamente de meu amado Professor.
    Palavra que escrevo sempre com letra maiúscula, por admiração. E, no entanto, não sabia dessa linda história, porque me casei muito cedo, fiquei longe de casa e perdi muito da história da família...
    Obrigada por esse depoimento tão lindo, que explica sua vida e seu fazer, de maneira clara, nítida. Tenho muito.orgulho de você, meu amado Professor!

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