Mestre Manuel Marcela, tipo longilíneo, um pouco curvado pelo passar dos anos, cor pardacenta, sorriso largo e envolvente, cativava à primeira vista. Boa prosa, era o centro das atenções onde quer que estivesse; a falta de instrução curricular – nunca alisou banco de escola – era compensada pela inteligência acima do normal, memória aguçada e, sobretudo, pela presença de espírito.
Não titubeava. Tinha a resposta na ponta da língua a qualquer indagação, não importava o assunto, puxou por ele, não esperasse muito não, num piscar de olho, vinha a resposta curta e grossa, suscitando hilaridade, sua marca registrada.
Dava prazer ouvir o mestre Marcela, como era conhecido, cheio de lorotas e tiradas espirituosas, deixava a todos extasiados. Contudo, não provocasse o mestre, o troco vinha em cima da bucha, e o gaiato intrometido se veria em maus lençóis, alvo da galhofa e zombaria dos circunstantes; revidar, nem pensar, quem se atreveria a permanecer na linha de fogo, achava bem mais prudente dissimular o agravo, quando não desaparecia com o rabo entre as pernas.
Tinha plateia cativa. Na cidadezinha onde morava, não havia um ente que lhe fosse indiferente, por mais turrão que pudesse parecer. Para ouvir o mestre, não havia hora nem lugar, as obrigações do dia a dia que se danassem, ficassem para depois, sempre se dava um jeito. Era uma maneira de ajudar a passar o tempo, já que a vida por ali transcorria numa lentidão de causar tédio. Passava dia e entrava dia, e tudo na mesma. Nada ocorria que viesse alterar aquela rotina e tirar da modorra aquela gente interiorana, desamparada, à míngua de progresso e justiça social. Dir-se-ia que o tempo por ali havia parado.
A fama do mestre Marcela se alastrava. A cada dia novos adeptos se incorporam à turba. Logo transpôs os limites da terrinha e ganhou os caminhos e veredas, poeirentos e tortuosos do velho sertão; era citado com frequência em todos os recantos. Difícil encontrar um sertanejo que não conhecesse , pelo menos, um ¨causo¨do mestre Marcela, e se comprazia a passar adiante. E assim, sua reputação crescia na admiração de todos.
Sujeito chistoso, irreverente, ao mesmo tempo muito habilidoso, notadamente, em se tratando de trabalhos artísticos: exímio pintor de paredes e superfície, pedreiro de nomeada; mas, com a música, batia nos peitos, não tinha inveja de ninguém: apesar de nunca ter posto os pés numa escola de música, não conhecer uma nota da escala, tocava "bombardino" de ouvido, para ninguém botar defeito. Tinha pelo instrumento verdadeira predileção, e na certa, era correspondido.
Mas como acontece, e para não fugir da regra, o mestre Marcela tinha o seu ponto fraco, o "calcanhar de Achiles" era um cachaceiro inveterado. Não podia sentir o cheiro da branquinha que largava tudo; e quando ingeria a primeira dose, não sabia parar mais. Quando lhe faltava dinheiro para custear o vício, não se fazia de rogado, apelava à boa vontade dos amigos, e até mesmo de estranhos, contanto que não lhe faltasse "a água que passarinho não bebe".
Contam que, certa ocasião, o mestre se encontrava de bolsos vazios, e com uma vontade incontrolável de beber; procurou impaciente por seus velhos camaradas de farras, mas não encontrou ninguém. Varreu o horizonte, andou pra lá e pra cá, coçou o pixaim, voltou a revirar os bolsos, e nada. Sem ter para quem apelar, achou por bem se socorrer do comerciante Belarmino Pires, conhecido tremendo pão-duro. Na falta de outro, tinha que apelar, quem sabe... Não deu outra. O comerciante Belarmino Pires, que não abria a mão nem para dar adeus, foi peremptório:
⏤ Não tenho bebida pra dar!
A verve do mestre aflorou incontinenti:
⏤ Afinal você é Pires, e todo pires é raso.
A verve do mestre aflorou incontinenti:
⏤ Afinal você é Pires, e todo pires é raso.