Bendita seja a árvore, semeadora de livros.
Cada pessoa tem seu Pinóquio, vou contar a história do meu, o leitor poderá também contar a sua. Pinóquio está presente nas minhas mais antigas recordações da infância. Lembro-me de um episódio que me marcou muito, era pequena, devia ter oito anos, fui com minha mãe assistir ao desenho animado de Pinóquio, uma versão romantizada de Walt Disney. O cinema ficava em Campina Grande, Cine Avenida, situado na Avenida Getúlio Vargas. A sala que exibia o filme estava completamente lotada, ficamos em pé. No meio do filme, minha mãe resolveu sair,
estava adorando aquela história do menino feito de madeira, mas que agia como se fosse um ser humano de verdade e que gostava de mentir. Chorei e implorei a minha mãe para ficar até o fim, não houve jeito, as cadeiras estavam todas ocupadas e ela se sentia cansada. Para minha grande tristeza, saímos do cinema e não vi o final do filme. Anos depois li inúmeras versões e traduções de Pinóquio e satisfiz o desejo que fora interrompido na infância.
Carlo Collodi, o criador de Pinóquio, é o pseudônimo literário de Carlo Lorenzoni, ele nasceu na cidade de Florença no século XIX, gostava de escrever histórias para crianças e tornou-se famoso ao escrever esta história do boneco feito de madeira. Há inúmeras versões e adaptações, cito algumas que li nesses últimos anos. As aventuras de Pinóquio, versão de Stella Gurney (Ed. Ciranda Cultural, 2011); As aventuras de Pinóquio, tradução de Ieda Beck (Ed. Martin Claret, 2013); Pinóquio, tradução de Marina Colasanti (Ed. Companhia das Letrinhas, 2015); As aventuras de Pinóquio, versão de Liliane e Michele Iacocca(Ed. Paulus, 2019 — esta edição contou com belíssimas ilustrações da paraibana Veruschka Guerra); Pinóquio: o livro das pequenas verdades, recriação e ilustrações de Alexandre Rampazo (Ed. Boitatá, 2019).
Sobre este trabalho de Alexandre Rampazo, faço algumas considerações. Em 2020, o autor/ilustrador ganhou dois prêmios da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil – Melhor Livro para Criança e Melhor Projeto Editorial. O livro de Rampazo não é uma tradução, tampouco é uma versão romantizada, é realmente uma recriação da tradicional história de Collodi. A leitura do texto permite que se vislumbre criatividade de linguagem, de ilustração e de projeto editorial. A repetição em forma de refrão que aparece em várias páginas do livro – “não seria mais somente um boneco de madeira” – já é o prenúncio da inovação do texto. O espelho aparece como uma metáfora, é através do espelho que o boneco tem a sensação de ser outro personagem, mas é esse mesmo espelho que lhe dá a certeza de que é apenas um boneco de madeira.
Outro aspecto que merece destaque é o subtítulo – “o livro das pequenas verdades”, contrapondo-se à versão original. A impressão que o livro passava para o leitor era de um boneco/menino que gostava de mentir, na versão de Rampazo, ele vai romper a barreira da mentira e refletir sobre sua própria identidade, é “agente de seus próprios pensamentos e sentimentos”.
Quanto à caracterização visual de Pinóquio, Rampazo colocou o corpo feito de ranhuras de madeira e a roupa que usa é de arlequim, uma fantasia muito usada no Carnaval. O arlequim é personagem da comédia “dell´Arte” e seu traje é feito de retalhos em forma de losangos coloridos. O arlequim também faz parte do teatro mambembe e das manifestações populares.
No que se refere ao projeto editorial, o escritor e ilustrador brasileiro foi criativo. Na versão de Collodi, cada vez que Pinóquio mentia seu nariz aumentava de tamanho. No meio do livro de Rampazo, várias páginas se apresentam dobradas em forma de sanfona e começam com esta frase: Era uma vez uma árvore, seguindo-se que sonhou em ser menino. O nariz começa a crescer e se torna um galho de árvore bem comprido. Nas duas páginas desdobráveis, vem esta conclusão: E a árvore onde o menino repousava não sabia se ela mesma era um menino que havia sonhado que era uma árvore ou se era uma árvore que sonhou em ser menino. Na ponta do nariz do menino/árvores está pousado um passarinho. A poeticidade está presente no texto verbal e nas ilustrações.
Para o ilustrador Nelson Cruz, este livro é um precioso jogo de imagens, deleite puro é acompanhar somente a narrativa das ilustrações. O ideal é esquecer a linguagem verbal e fazer uma leitura a partir das ilustrações.
As leituras das novas versões de Pinóquio me redimiram da frustração infantil. Lendo esses livros me transportei para a infância e pude sentir toda a beleza da história de um boneco de madeira, sonhador, inquieto e que se identifica com as crianças do mundo inteiro.
O filme de Guillermo del Toro — Pinóquio (2022) — é também uma releitura da história, um musical em “stop-motion”. Depois que vi este filme, concluí que não sou mais a menina que chorou porque não viu o fim do filme na infância, sou uma adulta que se emociona com histórias sensíveis e cheias de sutilezas como a de Rampazo e a de Guillermo del Toro.