A ladeira da Rua da República, vinda dos lados do mangue do rio Sanhauá, passava pelas fábricas. A Matarazzo, a de bebidas, descaroç...

Pinica e o tímido

conto cronica nostalgia paquera
A ladeira da Rua da República, vinda dos lados do mangue do rio Sanhauá, passava pelas fábricas. A Matarazzo, a de bebidas, descaroçadora de algodão e desfiadora de agave. Pinica levantava cedo, o balde de leite percorrendo as ruas sonolentas. O céu indeciso. Nem noite, nem dia. Ele entregava a voz explodindo na calma do amanhecer.

Era uma ruazinha sem saída, a 3 de maio, defronte, a lateral da fábrica de refrigerantes de seu Lindolfo. Diariamente, o rapazola via Alda, meninota lourinha, sapeca, indo buscar o pão na barraca de esquina de seu Teodósio. Ficava à espera daquele momento em que o mundo se tornava amanhecido
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em pleno sol se pondo. Ele, um tímido por índole, somente olhava a nunca sido namorada como se ela fosse. Fixava-se em Alda, menina dos sonhos.

Zé Fausto um tipo folclórico: sempre de paletó, chapéu castigado, guarda-chuva, apaixonado pela política, desconfiou da espera diária do rapazola pela menina. Vinha sempre comentar sobre carestia, memórias, mas de olho no apaixonado oculto. A desconfiança daquele amor platônico começou a se estender pela vizinhança fuxiqueira.

Todos sabiam que nas tardes tranquilas um toque de trombeta soava. Cupido atirava a flecha, mas sempre errava o alvo. Pleno tempo em que boleros tocavam nas rádios. Ele deixava a janela, ensaiava passos na sala e, depois, ia deitar-se em viagem pela garota neta de seu Teodósio.

O apito da fábrica Matarazzo lhe dava o sinal. Voltava, ansioso, a ver a rua e a menina apontando. Ela sequer o olhava. Pinica beliscava o tempo de vacas gordas. Como quem bebesse o leite quentinho do peito delas, nos estábulos que existiram antes de serem derrubados para ceder lugar à atual Estação Rodoviária.

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O rapaz tímido e Alda nunca se falaram. Pinica sorria da falta de coragem do rapazola: “Derrama o leite porque quer”. E saía, o leite transbordando, deixando um risco branco sobre a rua mal calçada. O adolescente nunca se aproximaria da menina. Ela se foi para Recife. Ele continuou na inútil espera de que ela voltasse. Nunca mais a viu. Nem sabia que Alda namorava Pinica, às escondidas.


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  1. Bravíssimo, amigo Guerra. Francisco Gil Messias.

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  2. Você, amigo, sempre a me incentivar. Abraço.

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