Neste conto, Mercedes Cavalcanti enfatiza com perícia a força redentora da paixão.
(Antonio Carlos Secchin)
(Antonio Carlos Secchin)
Sua infância transcorrera sossegada. Contudo, justamente à época em que começava a experimentar as intensas transformações no corpo e na alma, perdera o pai.
Paralelamente, passou a ser vítima de bullying na escola.
Eis que ele tinha um nome diferente e uma timidez crônica. Além do mais, era destituído dos atrativos físicos sugeridos pela estética em voga. Prato cheio para gozações:
⎯ Ha, ha, ha! Pensem em um nerd feio, ridículo.
⎯ Genteee, como um tribufu desses se chama Paixão?
⎯ Hum. Paixão. Pois sim. Até parece que vai arrasar corações.
Foi assim que o seu nome, que poderia albergar tantas possibilidades bacanas, de verdade o atormentou.
Talvez, culpa das irmãs moiras – perenes deusas do destino.
Quem sabe, no instante em que teciam o fio da sua vida, girando o seu nome na roda da fortuna, as três deusas estivessem de mau humor. E, ao invés de lhe vaticinarem os prazeres risonhos de um Dioniso, lhe agouraram a tristeza sombria de um Hades.
O fato é que, vivendo em um mundo e uma época em que a aparência era superestimada, Paixão fizera, sim, intentos de melhorar o seu visual. Apostara nas lentes de contato. Mas tivera problemas na córnea.
Resultado: vira-se obrigado a desfilar no colégio os seus grossos óculos fundo de garrafa que em nada o favoreciam. Ao contrário, sublinhavam o seu vasto nariz adunco a ensombrecer o traço mínimo de seus lábios.
Um de seus colegas, que desenhava, não perdera a chance de caçoar dessas assimetrias físicas. Logo começou a criar caricaturas jocosas. Passavam-nas de mão em mão, a pretexto de amenizar a chatice de algumas aulas.
De cada canto eclodiam risinhos de mofa: é que, nos desenhos, o rosto de Paixão não tinha boca. Resumia-se a óculos e narigão de papagaio, além das enormes orelhas de abano que os caracóis de seus cabelos não conseguiam disfarçar.
Certa vez, as meninas da classe o agarraram, a miar como gatinhas. Às gargalhadas, troçavam com vozes falsetes, em fingidas declarações de amor.
― Ahn, vem, minha Paixão.
Entre todas, arregaçaram-lhe a camisa, de onde saltaram alguns botões. Riscaram o seu peito com as unhas. Por fim, aplicaram-lhe, na pele e na farda, dezenas de beijos lambuzados de batom, que se mesclaram às gotas de sangue dos arranhões.
Assim que chegou em casa, vendo-o recoberto de bocas encarnadas, a sua mãe exclamou:
― Filhinho! Você está me saindo um verdadeiro Don Juan! – E piscou-lhe um olhar cúmplice.
Ele não quis conversa e foi tomar uma ducha. Ali ficou durante quase uma hora, banhando-se e chorando. Até que não sobrasse sobre a sua pele nenhum rastro de bocas vermelhas ou digitais de escarninho.
Mais calmo, foi ter, depois, com a mãe. Essa sobrevivia de costuras para fora, mas, na ocasião, remendava o seu uniforme, rasgado pelas meninas.
Ao notar a sua presença, ela lhe abriu um sorrisão:
― Você encorpou, virou moço bonito e, agora, enlouquece as garotas!
Após uma pausa, prosseguiu, sem disfarçar o orgulho:
― Estou pregando os botões bem reforçados, viu? Vou colocar a sua farda de molho, com tira-manchas. Ficará novinha em folha, pronta para outros beijos.
Abanando a cabeça, o menino a observava. Comovido com a expressão radiante a iluminar a melancolia habitual de sua mãe, não teve coragem de lhe contar a verdade.
Seguia uma rotina gris. Na escola, humilhações. Em casa, lágrimas caladas.
Aos quinze anos, havia perdido o seu sorriso nas palavras ferinas dos colegas de escola.
Uma madrugada, soube que não valia a pena viver. E engoliu trinta e três comprimidos – todo o suprimento de soníferos da mãe.
Passou tão mal, que o remédio não o adormeceu para um fim calmo. Enjoou, a contorcer-se em ânsias, o estômago em brasa, o corpo em agonia. Logo se deu conta de que não suportaria esperar a morte, imerso em tanta dor.
Arrastou-se até a sala onde a mãe ainda se debruçava na máquina de costura. Quase sem voz, pediu-lhe ajuda.
Já no táxi, agarrada ao filho que tremia sob um suor gelado, ela o ralhava, no seu acalanto singelo:
― Ô filhinho, perdeu o juízo, foi? Pra que tanto sonífero? Bastava um só comprimido e você dormia.
Após o incidente, Paixão mudou de estratégia. Para se esquecer da vida, estudava sem parar.
― Meu menino é de ouro – segredava a mãe às amigas. – Um dia vai ser doutor.
Aplicado, cedo entrou, de fato, na universidade.
Temendo atrair sobre si as chacotas de seus novos colegas, decidiu tornar-se invisível. Fingia-se de morto. Como um fantasma, ocultava-se de pessoas e coisas. Mantinha-se em sombras e guardava distâncias, evaporando-se da vista de todos.
E foi assim, asilado atrás de colunas, paredes e plantas, que avistou Iris pela primeira vez.
Ah! Quando ela surgia, seu coração se apressava. Ruborizava-se e, receando que alguém percebesse, inclinava o rosto ou o cobria com as mãos.
Íris era exatamente o oposto dele.
Era linda.
Encorpada, cheia de cores. Cabelos compridos de ondas do mar. Olhos da noite de lua nova. Cintura cigana a mover-se qual flamenco dedilhado ao violão. E a sua risada tilintava como cristais, num brinde à vida.
Mas eram os seus lábios de vinho que realmente o seduziam, deixando-o louco só de vê-los.
Namoradeira, dava a impressão de que, a cada semana, conquistaria um novo bem-querer.
Menos ele.
Era invisível para todos, principalmente para Iris. Inexistia, como presença concreta.
Aconteceu, inclusive, um episódio bizarro: durante um intervalo entre as aulas, a moça cruzou o corredor apressada. Ao passar pelo rapaz sem vê-lo, atravessou o seu corpo!
Essa invasão de seu ser provocou em Paixão uma tosse convulsa. Assustado, tossia e se apalpava e se beliscava, checando a resistência de sua pele.
O ruído da tosse fez Iris parar. Olhou para trás. E, pela primeira vez, após um ano inteiro a transitarem pelo mesmo acesso da universidade, viu-o:
― Desculpe-me, ã… Como é mesmo o seu nome?
Não queria dizer que se chamava Paixão. Correria o risco de ouvir um comentário chistoso – e, dessa vez, logo de quem? – logo da menina que amava. Por isso, embora com o coração aos pulos, virou-lhe as costas. Caminhou em direção contrária.
Nos dias subsequentes, a moça lhe enviava, em vão, olhares curiosos. Interessados. Por fim, sentiu-se espicaçada, quase ofendida. E deitou-lhe olhares de espanto. Decepção. Raiva. Dor. Aversão. Ódio.
Que indiferença escancarada, a desse menino!
Ele tão feio, descorado. Ela tão bela, feita de cores. Como era possível, isso? Por que os seus encantos não funcionavam com o cara?
Sucediam-se as semanas. Quanto mais saracoteava Iris, mais a ignorava Paixão.
Esquivo, à força de tanto se camuflar, sua figura ficava, a cada dia, mais pálida, sumida e apagada. A memória, contudo, mantinha-se acesa. Vivas lembranças más, dos tempos em que, na escola, era o palhaço do dia.
Quando mais passava o tempo, mais bizarro se tornava. A sua mãe já não podia dar-lhe o beijo de boa noite na cama. É que a pele do filho perdera a substância. Assim, o lábio materno atravessava a sua bochecha e acabava beijando o travesseiro.
Desenganado pelos médicos, que diagnosticaram uma síndrome desconhecida, Paixão perdia a densidade. Gradativamente, ia passando do estado sólido ao gasoso.
Por causa de seu jeito arredio, quase ninguém o via deslizar pelos corredores da universidade. Porém, alguns, assombrados, assistiam os seus óculos a flutuar e suas calças a se abrir e fechar como uma tesoura, em passos marcados pelo rastro de seus tênis.
Em uma manhã de sol e nuvens claras, Iris se aproximou:
― Paixão – segredou-lhe.
― Ih, descobriu o meu nome – encolheu-se ele na carteira. E naquele momento, considerava a sua invisibilidade um dom para dela se esconder.
Mas a garota o via e sentou-se, provocativamente, ao seu lado. Com voz estranha, confidenciou-lhe:
― Andei me perguntando por que eu, que sempre fui alegre, agora me sinto deprimida. Recentemente, descobri a resposta: paixão.
Por trás dos grossos vidros de seus óculos, o rapaz a encarou. Calado. Quieto. Secretamente, porém, saltitava, descontrolado, o seu coração.
― Me apaixonei por você e nem sei o seu nome – disse a moça.
Então, ela não sabia…
― Paixão – sussurrou-lhe ele, num ímpeto, quase num sopro, já arrependido de haver falado, com o coração por um fio, a ponto de explodir em fogos de artifício.
― Como?
― Meu nome é Paixão – repetiu, em um pingo de voz, fechando e comprimindo os olhos com força.
― Oh! Que belo. Então, me apaixonei pela Paixão em pessoa.
Ambos se entreolharam.
E o jovem vislumbrou, na noite dos olhos dela, fulgores de estrelas e luas cheias!
Quando Íris o abraçou, piorou a sua palpitação, logo seguida de falta de ar, falta de sangue nas veias, falta de um coração batendo. A sua alma se desgarrava e se evadia.
Eis que a síndrome chegara ao derradeiro estágio. O que ainda restava dele sumiu, completamente, no ar.
Como se tivesse asas, Paixão subia e subiiiiaaa, levitaaando ao infiniiito. E ali, naquela imensidão absoluta, experimentava uma indescritível sensação de harmonia.
Ele era uma estrela integrada aos bilhões de estrelas do universo.
Fora acolhido.
Sentia-se em casa.
Por isso, os braços de Iris, inutilmente, tentavam abraçá-lo. E acabaram abraçando o seu próprio seio.
Aaaaaaaaaaahhhhhh.
O grito da mulher enamorada elevou-se às constelações e dimensões do além. Dorido, lancinante, avançava, a ecoar e retroar, retinindo em cintilações douradas.
Até que o grito atingiu, em cheio, o espírito de Paixão.
Explodiu, então, em fluxos de eletricidade. Raios a lhe transmitirem surtos de estremecimento atroz. Tão forte era a força das vibrações, que terminou por quebrar o elo entre Paixão e o cosmos.
E ele caiu, caiu, caiuuuu.
Por fim, aterrissou. Abriu os olhos, buscando o ar, em um chiado fundo: voltara! Voltara à vida!
Pendurada em seu pescoço, Íris chorava.
A síndrome sumira.
Estava de regresso, vivo, visível, sólido, palpável, de corpo inteiro!
Foi inundado de um sentimento tão vasto que não cabia no seu tempo presente. A felicidade era uma cachoeira que transbordava no seu hoje, preenchendo, em retrospectiva, todos os seus momentos vividos: segundos, minutos, horas, anos, décadas, séculos – milênios atrás.
E eis que, num rito ancestral que maravilhou a si próprio, Paixão aproximou o seu rosto ao de Íris. O beijo veio tão natural como uma abelha que colhesse o mel da flor. Agora ele nascia, agora ele vivia, agora era um risonho Dionísio, a beber o vinho deleitoso dos lábios de sua bem-amada.