Para muitas pessoas, é banal, posto que diário e rotineiro, passar por uma padaria qualquer e levar alguns pães para casa. Mas não era banal para ele: era um ritual solene descer a Manuel Elias de Araújo, dobrar na Silva Jardim e seguir até a Santo Antonio, às 10 para as seis da tarde, para colher o pão da fornada das seis horas da tarde na mesma padaria, sua preferida.
Quando pequeno, ficava à janela da casa, todos os dias, às cinco e meia, para ver descer do ônibus o pai de Geraldo e Joãozinho, meninos como ele, que corriam para receber a bênção e o pacote de pão quentinho das mãos do pai. Como ele desejava aquela bênção: o pão da Padaria das Neves! Ele nunca se esqueceria do primeiro pão daquela padaria, que ele degustou lentamente, saboreando cada pequenino naco, que ia destecendo como pétala daquele pão-flor.
Os filhos do homem que sempre trazia o pão quentinho moravam em casa própria, tinham água na torneira, chuveiro, o pai chegava sempre de paletó e vinha de ônibus. Ele morava sob aluguel, seu pai ia buscar água no chafariz, o banho era de cuia e seu pai ia e vinha a pé, em manga-de-camisa.
Só nas quatro festas do ano seu pai trazia o fresco pão da Padaria das Neves, mas a esperança do menino estava sempre à janela, todos os fins de tarde, de olho na esquina da Nilo Peçanha com a Rodrigues Alves, de onde sempre surgiria o pai e quase nunca o pão, e ouvido na Ave-Maria de Gounod, da Rádio Caturité, que derramava alguma melancólica beleza em cada crepúsculo.
Nunca havia a coragem de pedir ao pai o pão quentinho da melhor padaria, que ele perseguiria a vida inteira. Naquela época, as portas das padarias não estavam abertas a todos: os de notas minguadas só compravam na bodega, anotando na caderneta e pagando no fim do mês, às vezes deixando parte da conta pendurada. Naquela época, quase tudo, em famílias como aquela, dependia da caderneta. Principalmente as coisas mais duradouras, como panos de prato, bule e roupas, pois também havia a caderneta dos prestamistas, famigeradas figuras que vendiam em domicílio toalhas de banho, panelas, pratos, cortes de tecido, e todas as bugigangas caseiras.
O maravilhoso pão da Padaria das Neves era apenas um pão para quem o tinha à mão todos os dias naturalmente, mas não era o seu caso. Ele só comia o pão dormido, comprado nas manhãs de bodegas, quando o trigo já perdera o convidativo olor e a resistência da textura. Isso quando havia pão, pois o que mais freqüentava as manhãs daquele garoto eram o cuscuz ou a batata doce, e, convenhamos, nem toda criança encara uma batata doce às sete da manhã. Um pão fresco, quentinho, consistente e cheiroso era quase um milagre para quem o prelibava dias a fio e, quando o tinha à mão, o recebia como sagrado ofertório!
Trinta anos depois, lá vai ele, todas as tardes, no mesmo horário, buscar o melhor pão da cidade. Poderia ir em outro horário, mas a realização será mais completa se ele passar às seis da tarde em frente à casa de Seu Joaquim e parar para ouvir a Ave-Maria de Gounod que continua vindo da rádio Caturité e de sua infância distante.
Sem dúvida, é comum para qualquer pessoa passar por uma padaria e levar alguns pães para casa, mecanicamente, como mais um componente da próxima refeição. Mas não é comum para ele. Ele não leva impessoais pedaços de trigo para o jantar: leva mesmo é um pão particular, que tem história, cujo anseio de degustação atravessou décadas e segue imperativo. O pão tenro, quente, fresco e único, ele leva para si, para a sua esposa e para os seus próprios filhos, mas leva principalmente para o filho de seu pai, aquele menino antigo, que continua na janela espreitando a esquina da Rodrigues Alves, esperando o pão da Padaria das Neves, nas mãos do pai, que já vem, que já vem, que já vem...