O diálogo com a tradição poética, como se sabe, não é novidade entre os autores modernos brasileiros. Muitos deles buscaram no cultivo de moldes e temas medievais uma forma de dialogar com o passado. Além de cultivar o verso livre e os versos brancos, ligaram-se à tradição medieval através da poesia popular – a exemplo de Mário de Andrade e João Cabral de Melo Neto. Ou praticaram, seja a forma fixa dos romances, com o metro heptassilábico e o esquema invariável de rimas pares e assonantes, seja os temas, metros e procedimentos estruturais típicos das cantigas trovadorescas – conforme atestam as obras de Onestaldo de Pennafort, Manuel Bandeira e Guilherme de Almeida.
Guilherme de Almeida Museu Casa Guilherme de Almeida
Pierre-Henri Révoil
“Mandou el-rei sete barcas
em liame de sôbro armar,
com seu chapitéu à popa
sobrando a tolda, a ostentar
cruz e quina nos paveses,
oriflamas e pendões;
sua alcáçova de proa
dando ao vento os gonfalões;
seu traquete e mastro em viés
para vante; suas perchas
lavradas; e seu convés
alongado pelo beque
e esguichando o gurupés.”
Nau Santa Catarina do Monte Sinai Royal Museums Greenwich
Em outra vertente do seu medievalismo poético, Guilherme de Almeida dialoga com a produção dos trovadores, seguindo um procedimento que aparece em grande parte de Poesia vária: após registrar a epígrafe, geralmente de uma cantiga de amigo, ele desenvolve no mesmo metro a sua composição. A cantiga aparece como uma espécie de mote que lhe dá o tom e o módulo estrutural a ser glosado. A partir daí desenvolve-se o poema em tom geralmente reflexivo, às vezes sentencioso, substituindo as referências concretas por elementos de teor abstrato.
FilFantAIsies
Como exemplo desse procedimento, tomemos a conhecida cantiga de Nuno Fernandes Torneol que se inicia com estes versos:
“Levad’amigo,
que dormides as manhanas frias
todalas aves do mundo
d’amor diziam:
leda m’and’eu”
(NUNES, 1970, p. 267).
Na versão do modernista brasileiro, a invocação agora é feita não ao “amigo”, mas às “lembranças”, termo abstrato concebido como um ente concreto:
“Passai, lembranças, que passais pelas tardes claras;
todas as tardes de amor por mim já passaram:
só fiquei eu.”
Semelhantemente, os três primeiros versos de cantiga de Dom Dinis (195 C.V.):
“Mha madre velida,
uou-m’a la baylia
do amor”
passam aos seguintes:
“Minha alma sombria
vai para a alegria/ do amor.”
Idem, p. 205).
O poeta conserva o esquema métrico e rímico, e inverte a ordem da sílaba inicial para transformar “madre” em “alma”.
Devido a procedimentos como esses, Guilherme de Almeida está entre os poetas modernos que utilizam o legado medieval de maneira criativa e, ao mesmo tempo, integrada num projeto poético que tende a fundir modernidade e tradição. Se em algumas de suas composições prevalece o saudosismo idealizado, em função do qual se destaca o apuro da linguagem arcaizante, em outras ele dialoga com a poética dos trovadores de maneira original. A partir de fragmentos estróficos que, à maneira de epígrafes, lhe servem de módulos temático-sonoros, pratica um lirismo nostalgicamente reflexivo no qual os protagonistas do teatro amoroso, em vez de cavaleiros e donzelas, são as emoções, a memória e outros tantos enigmas que angustiam o homem moderno.