O diálogo com a tradição poética, como se sabe, não é novidade entre os autores modernos brasileiros. Muitos deles buscaram no cultivo de moldes e temas medievais uma forma de dialogar com o passado. Além de cultivar o verso livre e os versos brancos, ligaram-se à tradição medieval através da poesia popular – a exemplo de Mário de Andrade e João Cabral de Melo Neto. Ou praticaram, seja a forma fixa dos romances, com o metro heptassilábico e o esquema invariável de rimas pares e assonantes, seja os temas, metros e procedimentos estruturais típicos das cantigas trovadorescas – conforme atestam as obras de Onestaldo de Pennafort, Manuel Bandeira e Guilherme de Almeida.
Este último foi um ativo participante do nosso Modernismo, cujos ideais defendeu em palestras por várias partes do Brasil. As marcas medievais na sua poesia oscilam, grosso modo, entre uma espécie de aristocratismo heráldico, reconhecível em alguns textos de Pequeno Romanceiro, e breves composições que dialogam com a poética dos trovadores. Sobretudo na primeira vertente, é perceptível a preocupação com a reconstituição linguística, manifesta no reaproveitamento das formas arcaicas. O poeta reconhece que há nos poemas do livro “uma intenção filológica, arcaizante, isto é, de tentar recompor a linguagem peculiar aos vários ciclos a que se vão filiando as composições.”
Seu desafio, apresentado como “faina tentadora”, é recompor o universo dos romances enquanto substância e, sobretudo, enquanto forma. Daí a preocupação com os detalhes, que leva o poeta a apresentar, na “História das sete barcas”, uma espécie de maquete de uma nau portuguesa do Séc. XVI segundo ela é descrita por Henrique Lopes de Mendonça no seu Do Restelo a Vera Cruz – conforme está explicado na aludida nota final. Eis os versos com que inicia esta composição:
“Mandou el-rei sete barcas
em liame de sôbro armar,
com seu chapitéu à popa
sobrando a tolda, a ostentar
cruz e quina nos paveses,
oriflamas e pendões;
sua alcáçova de proa
dando ao vento os gonfalões;
seu traquete e mastro em viés
para vante; suas perchas
lavradas; e seu convés
alongado pelo beque
e esguichando o gurupés.”
Neles, o detalhismo na reconstituição do navio lembra o lavor dos parnasianos, com os quais o poeta se aparenta, ainda, pelo uso exótico do vocabulário náutico.
Em outra vertente do seu medievalismo poético, Guilherme de Almeida dialoga com a produção dos trovadores, seguindo um procedimento que aparece em grande parte de Poesia vária: após registrar a epígrafe, geralmente de uma cantiga de amigo, ele desenvolve no mesmo metro a sua composição. A cantiga aparece como uma espécie de mote que lhe dá o tom e o módulo estrutural a ser glosado. A partir daí desenvolve-se o poema em tom geralmente reflexivo, às vezes sentencioso, substituindo as referências concretas por elementos de teor abstrato.
Como exemplo desse procedimento, tomemos a conhecida cantiga de Nuno Fernandes Torneol que se inicia com estes versos:
“Levad’amigo,
que dormides as manhanas frias
todalas aves do mundo
d’amor diziam:
leda m’and’eu”
(NUNES, 1970, p. 267).
Na versão do modernista brasileiro, a invocação agora é feita não ao “amigo”, mas às “lembranças”, termo abstrato concebido como um ente concreto:
“Passai, lembranças, que passais pelas tardes claras;
todas as tardes de amor por mim já passaram:
só fiquei eu.”
Semelhantemente, os três primeiros versos de cantiga de Dom Dinis (195 C.V.):
“Mha madre velida,
uou-m’a la baylia
do amor”
passam aos seguintes:
“Minha alma sombria
vai para a alegria/ do amor.”
Idem, p. 205).
O poeta conserva o esquema métrico e rímico, e inverte a ordem da sílaba inicial para transformar “madre” em “alma”.
Devido a procedimentos como esses, Guilherme de Almeida está entre os poetas modernos que utilizam o legado medieval de maneira criativa e, ao mesmo tempo, integrada num projeto poético que tende a fundir modernidade e tradição. Se em algumas de suas composições prevalece o saudosismo idealizado, em função do qual se destaca o apuro da linguagem arcaizante, em outras ele dialoga com a poética dos trovadores de maneira original. A partir de fragmentos estróficos que, à maneira de epígrafes, lhe servem de módulos temático-sonoros, pratica um lirismo nostalgicamente reflexivo no qual os protagonistas do teatro amoroso, em vez de cavaleiros e donzelas, são as emoções, a memória e outros tantos enigmas que angustiam o homem moderno.