O poeta e tradutor Ivo Barroso (1929-2021) me ligou do Rio, a voz ainda bela e clara, pra saber como eu estava. Na conversa, ele - gr...

Meu sinal de Caim

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O poeta e tradutor Ivo Barroso (1929-2021) me ligou do Rio, a voz ainda bela e clara, pra saber como eu estava. Na conversa, ele - graças a quem eu lera clássicos italianos (como os de Ítalo Svevo e Umberto Eco), franceses (como os de Malraux e Perec), ingleses (como os de Jane Austen), alemães – como os de Herman Hesse – me disse, a propósito de “Demian”, obra desse último, dentro da tradição literária alemã do bildungsroman (“romance de formação”), que se identificara muito com o choque de Sinclair – menino puro dando de cara com as durezas do mundo, ao que respondi “eu também”.

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Peter Paul Rubens
Meu primeiro emprego, aos 15 anos, foi cheio disso. Mas nesse belo livro de Hesse houve outro elemento que me produziu forte impressão: o do “sinal de Caim”, que o Demian do título – em contraposição a Sinclair – diz possuir. Eu pensara nisso, algum tempo atrás, ao juntar todos os personagens que vivera em filmes: o pistoleiro dO Salário da Morte; o “terrível Tenente Maurício” de Fogo Morto; o delegado capacho do fazendeiro rico, em Soledade; o violento velho camponês de A Canga; o coronel escravocrata de Lua Cambará; e o empresário de passado truculento, dO Som ao Redor.

Esquisito, isso. Logo eu, que somente bati num homem num filme, Fogo Morto, e por insistência do Rafael de Carvalho, que fazia o Papa-Rabo e queria o tabefe “de verdade”, pra dar mais força à cena que tivemos ante a delegacia de Pilar.

Jamais na infância ou em qualquer outra fase da vida, tive uma briga sequer. Vi, no sertão, vários colegas sendo transferidos pra escapar de algo ruim que estava pra lhes acontecer, e a única vez em que o gerente me ofereceu isso foi quando soube que um matador de aluguel fora preso em Icó, quando vinha a Pombal pra me matar – por razões que nada tinham a ver com qualquer conflito físico em que me houvesse metido.

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Um dos críticos literários diz, do romance de Hesse:

- O personagem Demian diz que o sinal de Caim é o sinal dos corajosos: aqueles que se debruçam sobre o bem e o mal na busca incessante por si mesmo.

Isso pode até ser: toda a minha literatura tem sido resposta à provocação do oráculo de Delfos – “Conhece-te... e conhecerás os deuses e o universo”.

O curioso é que meu irmão, falecido há em 2017, foi algo como Abel, o filho dileto de meu pai, que me rejeitou até minha maioridade, porque, segundo disse, eu nascera quando a família já estava completa “e em pleno miserê da guerra: não foi bem recebido”. Mas – se até pela diferença de idade – eu e o mano nunca fomos muito próximos, nunca tivemos conflitos. Nem jamais os tive com outras pessoas.

No dia em que, subgerente da agência do BB em Pombal, alertei um colega de que sua conversa demasiado prolongada com outro, estava pegando mal no balcão entupido de clientes a serem atendidos, ele gritou “Fascista!” e, calado, voltei a meu birô, botei um papel na máquina de escrever e fiz meu pedido de demissão do cargo, de que na verdade já está farto.

Esquisito, portanto, que só tenha sido chamado para papeis sombrios, no cinema.

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