No livro Notas de Teoria Literária, Afrânio Coutinho elenca vários tipos de cônicas, e cita a “crônica-poema em prosa”, de conteúdo lírico, que é um mero extravasamento da alma do artista diante o espetáculo da vida, das paisagens ou dos episódios. Na literatura brasileira, Cecília Meireles escreveu muitas crônicas que se enquadram nessa modalidade. O título de alguns de seus livros nos levam a esse gênero, como: Crônicas de viagem, Crônicas de educação. Acrescento a esses títulos
O que se diz e o que se entende e Ilusões do mundo são verdadeiros poemas em prosa. Não precisamos ir muito longe, na Paraíba há cronistas que escrevem textos que trazem as mesmas características dos textos cecilianos.
Às vezes ponho-me a reler livros de crônicas de autores paraibanos que me atraíram em algum momento e começo a dar forma de poemas. O texto é tão poético que me interrogo: não será um poema? Torna-se um exercício agradável. Transformei em poemas alguns excertos de crônicas de certo cronista e vejam se não tenho razão.
Sou dado a ouvir histórias
e tenho particular interesse
pelas narrativas de pessoas silenciosas.
Aquelas que trazem um oceano
de possibilidades nos olhos
e um dialeto desconhecido nos lábios.
(...)
Esta outra crônica:Imagino-a silente.
Sentada na antiquíssima poltrona,
de estilo colonial,
observa as mãos que exalam,
pelo amplo apartamento,
uma suave fragrância de flores.
O cigarro, fiel companheiro das horas mortas e vivas,
se desfaz em cinzas e espirais de fumaça,
elevando discretamente a temperatura dos dedos,
brancos como espuma de um mar distante, tropical.
Quem será essa personagem misteriosa que atraiu o cronista? Será Clarice Lispector que gostava de fumar? Se não for, deve ser alguém que tem como companheiro fiel o cigarro e sente-se atraído pelo silêncio, ele também gosta do silêncio, há referências a – “pessoas silenciosas” .
A natureza é outro elemento reiterativo - os bem-te-vis, as abelhas, as flores que enfeitam o jardim, tudo é motivo para o devaneio.
Caminho pelo jardim.
Cantam mais alto os bem-te-vis.
A abelha zumbe e agiganta-se,
sumindo-se no cone do lírio imenso
em busca do pólen.
Deixo que as mãos deslizem pelas folhas,
sentindo a textura.
Sei que um dia não estarei mais aqui.
Este cronista é um leitor de Cecília Meireles, não tenho dúvidas. Vislumbro uma intertextualidade com o poema Motivo. Examine-se a última estrofe do poema ceciliano: Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno e asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.
Foi um exercício prazeroso ler estas crônicas e transformá-las em pequenos poemas. Cabe ao leitor continuar o exercício: reconhecer quem é o cronista tão especial e dar forma poética a algumas de suas crônicas. Fica o desafio.