No livro Notas de Teoria Literária, Afrânio Coutinho elenca vários tipos de cônicas, e cita a “crônica-poema em prosa”, de conteúdo lírico, que é um mero extravasamento da alma do artista diante o espetáculo da vida, das paisagens ou dos episódios. Na literatura brasileira, Cecília Meireles escreveu muitas crônicas que se enquadram nessa modalidade. O título de alguns de seus livros nos levam a esse gênero, como: Crônicas de viagem, Crônicas de educação. Acrescento a esses títulos
Às vezes ponho-me a reler livros de crônicas de autores paraibanos que me atraíram em algum momento e começo a dar forma de poemas. O texto é tão poético que me interrogo: não será um poema? Torna-se um exercício agradável. Transformei em poemas alguns excertos de crônicas de certo cronista e vejam se não tenho razão.
Sou dado a ouvir histórias
e tenho particular interesse
pelas narrativas de pessoas silenciosas.
Aquelas que trazem um oceano
de possibilidades nos olhos
e um dialeto desconhecido nos lábios.
(...)
Mali Desha
Imagino-a silente.
Sentada na antiquíssima poltrona,
de estilo colonial,
observa as mãos que exalam,
pelo amplo apartamento,
uma suave fragrância de flores.
O cigarro, fiel companheiro das horas mortas e vivas,
se desfaz em cinzas e espirais de fumaça,
elevando discretamente a temperatura dos dedos,
brancos como espuma de um mar distante, tropical.
Quem será essa personagem misteriosa que atraiu o cronista? Será Clarice Lispector que gostava de fumar? Se não for, deve ser alguém que tem como companheiro fiel o cigarro e sente-se atraído pelo silêncio, ele também gosta do silêncio, há referências a – “pessoas silenciosas” .
Nickolas Nikolic
Caminho pelo jardim.
Cantam mais alto os bem-te-vis.
A abelha zumbe e agiganta-se,
sumindo-se no cone do lírio imenso
em busca do pólen.
Deixo que as mãos deslizem pelas folhas,
sentindo a textura.
Sei que um dia não estarei mais aqui.
Eduardo Soares
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno e asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.
Foi um exercício prazeroso ler estas crônicas e transformá-las em pequenos poemas. Cabe ao leitor continuar o exercício: reconhecer quem é o cronista tão especial e dar forma poética a algumas de suas crônicas. Fica o desafio.