Subia a Sousa Pinto, na calçada oposta ao aqueduto de São Sebastião, em Coimbra, indo em direção à Praça D. Dinis, quando deparei-me com a fachada da Real República Rápo-Táxo (Rapa o taxo), cujo dístico atraiu a minha atenção:
“Aqueles que por copos volumosos, se vão da lei da sede libertando...”
República Rápo-Táxo, Coimbra ▪ Imagens D. Oliveira + Estendal Memórias
Era um chiste legitimamente rabelaisiano, característico da irreverência juvenil e estudantil, parodiando os versos camonianos, que se encontram no hall da Faculdade de Letras de Coimbra, compondo um painel da história de Portugal (Os Lusíadas, Canto I, Estrofe II, versos 5-6):“E aqueles que, por obras valerosas/ Se vão da lei da morte libertando,”
A paródia é também a prova viva da popularidade de Camões, de que fala Isabel Rio Novo, na mais nova biografia do poeta, publicada em junho deste ano – Fortuna, caso, tempo e sorte (Contraponto, Lisboa, 2024). A biógrafa, dando conta da fama alcançada
Esta FliParaíba é uma oportunidade para possamos comemorar, de modo oficial, os 500 anos de nascimento de Luís Vaz de Camões. Se as comemorações do lado de Portugal não param, no Brasil, o maior país de Língua Portuguesa do mundo vai passando batido. Com exceção de alguns artigos e matérias de jornais, não tenho visto nenhum evento oficial, por parte do Estado brasileiro, nem algum órgão cultural federal se manifestar a esse respeito. A FliParaíba preenche um pouco essa lacuna.
Fonte: Wkimedia (adapt.)
É exatamente tomando D. Afonso Henriques como mote, que eu gostaria de falar de Camões. Se um é o fundador da nacionalidade portuguesa, o outro funda o que daria a sustentação e a firmeza dessa nacionalidade: a Língua Portuguesa.
Monumento a Camões, no Centro Histórico do Rio de JaneiroD. Dabravolskas
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
Ora, a dilatação da Fé e do Império, de que fala o poeta é explícita como razão de Estado português. Se nos debruçarmos sobre a nossa história, veremos que no primeiro documento escrito na nossa terra, a Carta de Caminha, o escrivão da frota cabralina deixa bem claro o que Portugal deve fazer, com relação às riquezas vistas e não vistas, tendo como meio a catequese urgente do povo indígena (CORTESÃO, Jaime. A Carta de Pêro Vaz de Caminha, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994, p. 174):
“Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa, que querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem.
Porém o melhor fruto, que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.”
Porém o melhor fruto, que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.”
Ajuntemos a esse quadro a dedicatória inicial do poema a D. Sebastião, o protetor da obra, que autorizou uma tença em vida ao poeta. Saudado por Camões como “Ó novo temor da maura lança”, o jovem rei é incitado ao combate do “torpe ismaelita” (Canto I, estofe 8):
Vós, poderoso Rei, cujo alto Império
O Sol, logo em nascendo, vê primeiro,
Vê-o também no meio do Hemisfério,
E quando dece o deixa derradeiro;
Vós, que esperamos jugo e vitupério
Do torpe Ismaelita cavaleiro,
Do Turco Oriental e do Gentio
Que inda bebe o licor do santo Rio:
Na pena camoniana, o muçulmano merece “jugo e vitupério”, por ter querido instalar em Portugal e, por extensão, na Península Ibérica, o Islamismo, a “lei dos imigos Sarracenos” (Canto IX, estrofe 94). Camões, como homem de seu tempo, crítica a intenção colonizatória e expansionista dos árabes,
D. Sebastião de Portugal A. Coello, 1575
Ou fazendo que, mais que a de Medusa,
A vista vossa tema o monte Atlante,
Ou rompendo nos campos de Ampelusa
Os muros de Marrocos e Trudante,
A minha já estimada e leda Musa
Fico que em todo o mundo de vós cante,
De sorte que Alexandro em vós se veja,
Sem à dita de Aquiles ter inveja.
Mesmo quando apontamos as velas da leitura para o episódio do Velho do Restelo, no final do Canto IV (estrofes 94-104), as invectivas do velho de “aspeito venerando” e “cum saber só de experiências feito”, condenam a aventura planejada e perigosa às Índias, quando o inimigo está às portas, separado apenas pelo Estreito de Gibraltar. Assim, para que vão os portugueses buscar uma glória vã, movidos pela cobiça, se a riqueza maior a ser obtida é a segurança do reino, dando combate a um inimigo que está mais próximo?
Cena da batalha de Alcácer-Quibir, entre os reinos de Portugal e Marrocos ▪ Desc., S.XIX
Por isso, e não por falta de natura,
Não há também Vergílios nem Homeros;
Nem haverá, se este costume dura,
Pios Eneias nem Aquiles feros.
Mas o pior de tudo é que a ventura
Tão ásperos os fez e tão austeros,
Tão rudos e de engenho tão remisso,
Que a muitos lhe dá pouco ou nada disso.
Como bom soldado, Camões, o Trinca-Fortes (RIO NOVO, op. cit., p. 46), sabia empunhar a lança; como excelente poeta, empunhava, melhor ainda a pena. Sabia o poeta que, no mínimo, deveria haver um equilíbrio entre elas, e quando possível, a pena deveria tender a se colocar acima, bem acima, da lança. Trocando em miúdos, o poeta talvez dissesse, nos tempos atuais, que a Educação formal é o caminho adequado e ideal para o engrandecimento de um país, libertando-o dos que querem apenas dilapidar as suas riquezas. Não é o que se vê no Brasil do meu tempo, onde se aplica com convicção a máxima camoniana – “Quem não sabe a arte não na estima” (Canto V, estrofe 97) –; não era o que se via em Portugal no tempo do poeta (Canto V, estrofe 96; Canto VII, estrofe 79 e 85):
Vai César sojugando toda França
E as armas não lhe impedem a ciência;
Mas, nũa mão a pena e noutra a lança,
Igualava de Cícero a eloquência.
O que de Cipião se sabe e alcança
É nas comédias grande experiência.
Lia Alexandro a Homero de maneira
Que sempre se lhe sabe à cabeceira.
Olhai que há tanto tempo que, cantando
O vosso Tejo e os vossos Lusitanos,
A Fortuna me traz peregrinando,
Novos trabalhos vendo e novos danos:
Agora o mar, agora experimentando
Os perigos Mavórcios inumanos,
Qual Cánace, que à morte se condena,
Nũa mão sempre a espada e noutra a pena;
Nenhum que use de seu poder bastante
Pera servir a seu desejo feio,
E que, por comprazer ao vulgo errante,
Se muda em mais figuras que Proteio.
Nem, Camenas, também cuideis que cante
Quem, com hábito honesto e grave, veio,
Por contentar o Rei, no ofício novo,
A despir e roubar o pobre povo!
O Epílogo do poema reitera essa situação. Lamenta-se o poeta de ver a nação metida na ignorância, perdida em politicagem, em bajulações, ao sabor dos maus conselheiros, sem dar o mérito a quem de direito (Canto X, estrofe 145):
Nô-mais, Musa, nô-mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Dũa austera, apagada e vil tristeza.
É preciso ver, no entanto, Camões no contexto de uma sociedade de conquistas e de expansão, cujo poder bélico estava associado a outro poder mais forte, a Igreja Católica. Camões acreditava na grandeza de Portugal como nação a dirigir os demais porque o Deus verdadeiro estava a seu lado. Nada mais normal, portanto, do que cantar a glória expansionista lusitana, fechando-se na sua cultura como o centro do mundo e do universo (Canto X, estrofe 40, versos 5-8):
Ali verão as setas estridentes
Reciprocar-se, a ponta no ar virando
Contra quem as tirou; que Deus peleja
Por quem estende a fé da Madre Igreja.
Vejamos, agora o lado do Camões estrangeiro, ao ponto de um de seus poucos retratos em vida ser objeto de especulações, ensaios e de um livro, O rosto de Camões, de autoria de Aníbal de Almeida (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1996). A falta de documentação abundante, contribuiu para ver o poeta como um estrangeiro na sua própria terra.
Camões em Macau Desenne
Ao mesmo tempo conhecido e desconhecido, poeta e soldado, lírico sublime e épico grave, mas também brigão e afeito aos jogos de azar; capaz de sátira ferina, boêmio e perdulário, Camões foi navegador e teve a oportunidade de conhecer de perto a famosa Rota do Cabo, além de outras, contribuindo assim para uma verossimilhança externa de Os Lusíadas. O poeta foi vários e diversificados, com um perfil rico, bem delineado na sintética frase de sua biógrafa (RIO NOVO, op. cit., p. 230):
“O homem de letras que já era soldado começava a tornar-se também homem do mar.”
Desconte-se o fato de ter sido perdulário e boêmio, mas dê-se-lhe o crédito de ter lutado em Ceuta, onde perdeu um olho, e de ter lutado pela grandeza de Portugal em Goa; de ter ficado fora de sua terra, em viagens pela África e Ásia, a serviço do reino, por 17 anos, tendo sofrido um naufrágio no Camboja, perto da foz do rio Mekong (RIO NOVO, op. cit., p. 386), tendo sido preso, em sua volta a Goa, por causa do naufrágio, vindo de Macau, onde fora provedor de defuntos (id. ibid., p. 365), ao perder os bens que ali arrolara e que deveriam ser entregues à Coroa.
J. M. W. Turner, 1810
Felipe I de Portugal (=Felilpe 2 da Espanha)Ticiano, 1550
Felipe II de Espanha, após a morte de D. Sebastião, em Alcácer-Quibir, e do cardeal D. Henrique, tio do rei, e tendo vencido na batalha de Alcântara, D. António, prior do Crato, que se coroara rei, em 1580, faz-se Felipe I de Portugal, nesse mesmo ano. Diz-se que, sabedor da grandeza literária de Camões, deseja conhecê-lo. Não sabia o novo rei que Camões já havia morrido; que não se sabia exatamente onde morrera; que fora enterrado em vala comum e que os ossos trasladados, posteriormente, para os Jerônimos, não eram necessariamente os seus. O poeta morrera à míngua, em um hospital de Lisboa, até hoje não identificado, provavelmente de sífilis contraída nas suas aventuras venéreas em Portugal e alhures.
A morte de CamõesF. Metrass, 1874 ▪ Museu de Lisboa
Isabel Rio NovoDiv.
Nesse contexto, a biografia produzida por Isabel Rio Novo é fonte das mais importantes. Trata-se de obra incontornável para quem quiser conhecer o Poeta, a sua poesia e o contexto histórico de Portugal. Obra alentada de mais de 700 páginas, com uma extensa bibliografia de 38 páginas e contando com 1413 notas. No entanto, apesar da farta documentação compulsada pela pesquisadora, observa-se que ainda existem muitos fatos obscuros na vida de Camões. O poeta, pode-se dizer, continua, para muitos, um estrangeiro, e aqui no Brasil muito mais. São poucos, atualmente, os estudos camonianos nas universidades brasileiras, muitos estudantes dos cursos de Letras ouviram apenas falar de Camões, à vol d’oiseau, ou como gato passando por cima de brasa, numa tradução bem brasileira da expressão francesa. E ironicamente, muito disso se deve à agenda do decolonialismo...
Como diz o Soneto, “fortuna, caso, tempo e sorte/Têm do confuso mundo o regimento”. Vivemos num mundo dos mais confusos, onde verdade e mentira estão em rota de colisão jamais vista, às vezes se fundindo, às vezes, deliberadamente, se confundindo; o mais das vezes se transmudando uma na outra. A verdade, contudo, é uma só: os grandes escritores devem ser entendidos no contexto de sua época e avaliados, sobretudo, pela contribuição que deram à sua língua,
Alexei Bueno e Milton Marques Junior em debate sobre Camões no 1º FliParaíba (nov/2024) ▪ Centro Cultural S. Francisco, JP-PB ▪ Acervo: MMJr
Entendendo a importância dos grandes escritores, aproprio-me do título da biografia camoniana, para dizer que quis a fortuna que o caso, no tempo adequado, me desse a sorte de estar presente na mesma mesa do poeta e crítico Alexei Bueno, para eu poder presenciar que, apesar de todo o discurso decolonial, não conseguimos apagar de todo o colonialismo cultural. Fico triste, ao constatar que, na sua própria terra, há um poeta estrangeiro. No momento em que se completam os 110 anos de sua morte, durante um evento internacional, como o FliParaíba, acontecendo no complexo do São Francisco, que ele tantas vezes mirou da rua onde morou e onde viveu por dois anos, o poeta Augusto dos Anjos, o maior poeta da Paraíba e um dos maiores do Brasil, está ausente. Não que Augusto dos Anjos devesse excluir ou substituir Camões. Assim, como Augusto, Camões é necessário como o ar que respiramos.