Eis que surge uma notícia desafinada e triste: o silenciar de um piano. Morreu o pianista carioca Arthur Moreira Lima, aos 84 anos, vítima de câncer. Imediatamente me vem à memória o inusitado dia em que o entrevistei para o extinto Jornal O Norte, do Diários Associados.
O marasmo do plantão de um feriado de Corpus Christi nos anos 2000 me foi quebrado pelo toque do telefone da redação de O Norte. Eu era o chefe de reportagem e do outro lado da linha estava o saudoso Ricardo Anísio, reconhecido crítico musical, produtor cultural e editor do caderno de cultura do jornal, que se chamava Show.
Ricardo queria saber quem eram os repórteres de plantão e se estavam na redação. Exceto por mim, a redação estava sem vivalma. Os repórteres produziam matérias externas naquele momento.
Então, Ricardo Anísio me disse que Arthur Moreira Lima estava em João Pessoa após ter visitado Recife na noite anterior para participar de uma audição. E melhor: aguardava para fazer uma entrevista exclusiva ao Jornal O Norte. Para mim, a pessoa mais gabaritada para entrevistar Arthur Moreira Lima era o próprio Ricardo Anísio. Contudo, ele, sem dar maiores explicações, disse que não poderia ser o entrevistador.
Passados poucos minutos, Ricardo liga novamente e pergunta se eu havia conseguido um repórter. Disse que não e se fosse o jeito eu faria a entrevista. Como se diz: um jornalista é antes de tudo um repórter. Confesso que tentei, antes e em vão, arrumar justificativas para me desvencilhar da tarefa.
Ricardo Anísio me passou o telefone da residência de uma amiga onde Arthur Moreira Lima estava hospedado. Liguei, e a proprietária da residência informou ao atender que o pianista aguardava o contato do Jornal O Norte. Mesmo temendo cometer alguma gafe musical, eu fiz uma rápida entrevista tendo como gancho o novo projeto do pianista, o Piano pela Estrada.
Na conversa, Arthur Moreira Lima foi atencioso, simpático, e mostrou entusiamo em poder rodar o país e fazer apresentações para o povo em geral em um caminhão/palco tocando um repertório que mesclava o erudito e o popular.
Minutos depois, eu já estava novamente ao telefone com Ricardo Anísio que desejava saber o desfecho da entrevista. Contei-lhe que ele teria a matéria.
Com um certo tom de ironia Ricardo quis saber se Arthur Moreira Lima havia sido chato, se ficou irritado durante a entrevista. Respondi que definitivamente não, ao contrário, foi bastante amável e paciente.
Ricardo Anísio, reconhecendo o enorme talento do pianista, disparou:
“Eu não quis fazer a entrevista porque uma vez num concerto eu discuti com ele. Ele estava um porre. Parou o concerto reclamando sem razão de qualquer coisa. Eu não aguentei, critiquei a atitude dele e discutimos durante a apresentação, ele no palco e eu na plateia”.
E finalizou dizendo que usaria a matéria dois dias depois, na edição do sábado.
Surpreso, eu reclamei com Ricardo Anísio por não me alertar sobre o risco que corria do pianista estar mal humorado. Ele apenas sorriu e respondeu que se dissesse isso eu certamente me negaria a fazer a entrevista.
A matéria de página inteira foi publicada na capa do caderno Show. De quebra, eu fiquei orgulhoso de não ter desafinado, jornalisticamente falando, ao entrevistar um dos maiores pianistas do mundo e ganhei mais uma história de redação para contar. Salve Arthur Moreira Lima! Salve Ricardo Anísio!