Sinto falta da Rua da Aurora, no Recife. A parte que mais me agrada é a dos sobradões, quase no cruzamento com a Conde da Boa Vista. Atravessa-se o Capibaribe e chega-se à Rua do Sol. A “Veneza Brasileira”, assim dita, tem nesse trecho seu maior significado.
A internet me põe em contato com velhas fotografias, dessas postadas nas redes sociais pelo banzo de muitos setentões, e elas me transportam até a poesia de um Manoel Bandeira embevecido com os nomes das ruas da cidade: Aurora, Sol, Saudade, União... “Tenho medo de que hoje se chame Dr. Fulano de Tal”, suspirou ele no seu “Evocação do Recife”. Eis Bandeira, então, em sua inteireza, numa composição de 1925 solicitada por Gylberto Freire, ao que dizem, quando o autor vivia no Rio de Janeiro:
Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritssatd dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois —
Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da casa de Dona Aninha Viegas.
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincené na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos, namoros, risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não sai!
À distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão
(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)
De repente
nos longes da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo
Rua da União...
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
... onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
... onde se ia pescar escondido
Capiberibe
— Capibaribe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redomoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras
Novenas
Cavalhadas
Eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus cabelos
Capiberibe
— Capibaribe
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avó morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô.
Nos meus dias de menino, as noites do Bairro de Santo Antonio projetavam os letreiros de neon desde o alto dos prédios até as águas do Cabiparibe, espetáculo indescritível para o pirralho que havia acabado de sair da paraibana e pequeníssima Pilar. Já adulto, retomei, por anos a fio, o contato direto com essa paisagem. Primeiro, em direção à Sucursal do Jornal O Globo, na Rua do Riachuelo. Depois, no rumo do Jornal do Commercio, para o qual também escrevi durante seis anos.
Acostumei-me a fazer por ônibus a viagem desde João Pessoa. Se acompanhado da mulher e filhos, tomava a direção do carro com o endereço inicial de um tio querido, onde ocasionalmente os deixava. No primeiro caso, eu descia na Rodoviária instalada no subúrbio do Totó e dali apanhava o metrô até o centro. Após o desembarque, se fizesse sol, seguia a pé para ambas as redações, em duas fases distintas da minha vida profissional. Nos dias chuvosos, recorria ao táxi.
Certa vez, saído da Estação Recife do metrô, perguntei ao taxista, no início da fila de carros: “Você está livre?”. Ao ouvir a afirmação, solicitei: “Jornal do Commercio, por favor”. Entramos, batemos as portas e uma voz gritou: “Frutuoso!”. Virei-me à procura do suposto conhecido e assim também o fez o meu motorista: “Sim?”, respondemos quase em uníssono. O chamado era para ele, um raríssimo xará.
Rimos da situação e ele de pronto me identificou: “Você é Frutuoso Chaves e está vindo da Paraíba”. Costumava ler o Jornal do Commercio e, por razões óbvias, decorou meu nome e a praça de onde eu despachava meus escritos.
Como eu gosto desse trecho do Recife. Até, porque ali perto também situam-se o espaço e a memória do extinto Savoy. Lembro da quadra retirada do poema de Carlos Pena Filho e aposta em bronze numa das paredes deste que foi, por muito tempo, o mais boêmio dos bares recifenses.
São trinta copos de chope
São trinta homens sentados
Trezentos desejos presos
Trinta mil sonhos frustrados.
Comigo e o Recife tem sido sempre assim: uma lembrança puxa outra. Então, me ocorre, agora, a do querido Edilberto Coutinho, o paraibano que saiu de Bananeiras a fim de se estabelecer como jornalista no Rio de Janeiro e como autor premiado em Havana e Paris, com seu “Maracanã adeus”. Edilberto morreu na mesa de trabalho. Reclinou-se sobre uma velha Olivetti e deixou este mundão de Deus, em 1995, quando escrevia sobre os 50 anos do Savoy a pedido do proprietário, seu amigo. A gerência do hotel onde se hospedara recorreu à chave mestra quando notou que ele não saía do apartamento nem atendia ao interfone. Ali, jaziam, penosamente, o homem e seu ofício.