A brisa fria do outono sopra folhas sobre o jardim. Olho em torno e tudo hoje me parece um pouco despedaçado. Busco algum conforto em um poema de W. H. Auden – As I Walked Out One Evening – sobre o momento em que a verdade faz desmoronar as ilusões. O instante em que nosso verdadeiro eu, despojado de máscaras, se revela. Recorro a esse poema enquanto penso sobre a euforia desmedida da vitória e o desespero sombrio da derrota.
Nestes nossos tempos, vencer e perder se tornaram questões centrais da experiência humana. Vencer sempre foi um desejo natural, mas, com a amplificação das redes sociais, a vitória ganhou uma proporção inédita. Seja na vida pessoal, na política ou nos relacionamentos sociais, tornou-se espetáculo, mercadoria cujo valor se mede em curtidas, seguidores, aparências e excessos.
Entretanto, triunfos e perdas constituem espelhos reveladores. Eles testam nossas convicções, o modo como nos relacionamos com os outros e a solidez dos nossos valores.
Triunfar naturalmente oferece uma sensação de poder, validação e escolhas acertadas. Nossa vitória nos parece justa, quase inevitável. Julgamos merecê-la. Já a derrota nos soa como injusta, discutível, imerecida.
Ambas carregam armadilhas. Para os vitoriosos há a tentação de esquecer que uma conquista é parte de um fio delicado que atravessa as pessoas, as circunstâncias e as mãos invisíveis do tempo. É fácil ao vencedor tornar-se herói de si mesmo, mas, se olharmos de perto, compreenderemos que vencer nos oferece tão-somente uma pergunta: o que farei, agora, com a glória?
A derrota – chão áspero e solitário onde a vaidade se desfaz e as desculpas se empilham – é encontro inevitável com quem somos, sem adornos. Dói porque rasga o tecido do orgulho. Mas é justamente nesse lugar estreito entre o que desejamos e o que não conseguimos, que nossa verdadeira natureza se revela. Perder exige de nós uma dignidade que não se aprende nos dias de festa. Também traz uma pergunta: consigo respeitar a vitória alheia sem rancor?
A rigor, glória e queda são testes de caráter. Ao ganhar, é fácil para o ego embriagado desdenhar, escarnecer, reafirmar a própria superioridade. É difícil encontrar quem honre a própria vitória com generosidade, nobreza e respeito pelo outro.
Para o perdedor, o teste é igualmente complexo. Exige aceitar que nossa visão, esforços e crenças não foram partilhados – pela maioria (no caso da política) ou pelo outro (quando um relacionamento chega ao fim). Enfrentar essa realidade demanda maturidade e autocontrole.
Volto ao poema de Auden. Ele convida a olhar para o espelho e reconhecer que, mesmo em meio à aflição, a vida segue sendo bênção, ainda que não estejamos em condições de abençoar. Acredito que o esforço de permanecer equilibrado em meio ao caos é uma forma de bênção. Posso continuar tentando compreender o que move meus semelhantes imperfeitos e falíveis. Para isso, basta usar o meu próprio coração imperfeito e falível.
Vitória e derrota na política
O debate político tornou-se uma das forças mais corrosivas da nossa era. Ele nos fascina e arrebata. É uma arena onde vitórias e derrotas se tornam não só públicas, mas potencialmente devastadoras. E, ao nos envolvermos com paixão, corremos o risco de nos perder entre o fervor da nossa verdade e o esquecimento da humanidade do outro.
Vitórias e derrotas na política revelam um traço essencial que nos sustenta: a coragem de nos abrir ao diálogo, mesmo quando discordamos, de respeitar a vitória alheia, mesmo quando torcemos pela nossa, e de abraçar a perda como uma lição que nos devolve o tamanho exato da nossa própria grandeza.
Deveria haver por trás das promessas e ideais da política o necessário trabalho de escutar, negociar e reconhecer a humanidade daqueles de quem discordamos. Mas essa atitude nos soa hoje tão utópica quanto improvável – um exercício francamente ridículo para aqueles que se alimentam de cinismo.
Tempos ásperos os nossos, quando vitórias e derrotas ganham visibilidade global e os contendores são encorajados a se atacar como gladiadores de um coliseu digital para delírio dos que assistem e se deliciam com o sangue alheio.
Dói ver tantos mergulharem cegamente na opinião alheia, esquecidos de si mesmos e de seus valores. Tornam-se marionetes nas mãos dos que lucram intoxicando o mundo de ódio e medo. As opiniões em redes sociais, lançadas com hostilidade, buscam mais engajamento que diálogo. Imediatistas, são regadas a falsidades, distorções e deboches. Esse mundo fragmentado, mergulhado em uma selvageria que antes nos horrorizaria, torna-se motivo de orgulho. O que nos diminui e amesquinha é celebrado como troféu.
Temo pelas janelas quebradas da ética. A cada extremado que quebra uma janela, logo vem outro para estilhaçá-la em dobro. Na lógica de “responder à altura”, logo teremos apenas cacos do que foi o nosso edifício moral, nossa polidez e nossos valores mais caros.
Sobreviver à perda de um grande amor
Há momentos em que desejamos que a vida pudesse ser pausada e o tempo hesitasse um pouco, antes de prosseguir, deixando-nos suspensos entre o antes e o depois de uma partida. Quando alguém que amamos decide ir embora, algo dentro de nós implode. Não é apenas a despedida de um outro corpo, de uma voz ou de um toque; é o sonho desfeito, a expectativa quebrada e o adeus ao que poderia ter sido.
Embora dentro de nós tudo convulsione, a realidade impiedosa se impõe: o mundo não acaba junto com o relacionamento. Tudo permanece exatamente como estava – o mesmo céu, o cheiro de café se espalhando pela casa, os vestígios do amor em mensagens antigas; nosso corpo funcionando, os pés caminhando até o trabalho e o pulmão se enchendo de ar, embora a respiração esteja curta. Nada colapsa no mundo exterior. Há algo inquietante na rotina que continua, banal, após um amado decidir partir. E essa normalidade nos choca, gera um descompasso entre os dois universos em que nos movemos. É o instante em que nossa dor quer subverter as leis da Física e paralisar o ritmo da Natureza, impedindo o vento de agitar as folhas das árvores, fazendo a luz do dia ficar mais mortiça. Mas o universo é indiferente à dor da gente – sempre foi.
O coração, esse teimoso que insiste em cultivar esperanças, demora a aceitar o vazio. Resiste, repassa memórias como se nelas pudesse encontrar chaves e segredos que, se descobertos, reverteriam a marcha inevitável do fim. Uma tentativa de dar sentido ao que aconteceu. Tentamos em vão capturar o momento em que tudo parecia certo e, logo em seguida, já não estava. Mas nem sempre há sentido ou respostas satisfatórias. Às vezes o ponto de interrogação persiste porque a resposta está bem encerrada em outro coração. É assim que a vida funciona – paciência. Não há um roteiro, nem uma narrativa coesa. Apenas fragmentos que se juntam para formar algo que se é forçado a aceitar.
Para nosso desespero, o amor não vai embora instantaneamente. Não é algo que se pode embalar, guardar em uma mala e pôr no fundo de um armário. Ele gruda nas paredes, esconde-se nas frestas da casa, aparece nos cantos mais inesperados da mente de quem fica. Eis o que torna a perda tão difícil nos primeiros tempos.
Mas é nesse continuar que aprendemos, não sem sofrimento, que sobreviver é decidir não ser consumido pelo abismo que o outro deixou. No silêncio das madrugadas, quem nos encontrará de olhos abertos, ouvindo o silêncio? Nosso lado mais sombrio e perverso, que deseja de alguma forma ferir o outro? Ou o que se recusa a permitir que a dor da perda seja mais forte que os nossos mais caros princípios?
Felizmente, o tempo põe bandagens. Numa certa manhã a respiração estará mais leve. Nesse dia, a memória do amor perdido deixará de ser dor. As lembranças de cama e mesa, certas canções, o lugar que agora evitamos — tudo isso será capaz de nos tocar de uma forma diferente, levemente nostálgica talvez, mas sem nos devorar.
Talvez até possamos sorrir, conformados, ao lembrar que amar é risco, é salto no escuro. E nos congratularmos por ter tentado e, embora contabilizando feridas, termos emergido mais sábios.
Partidas nunca são apenas sobre quem se foi. Servem essencialmente para pensar sobre nós mesmos. Sobre quem seremos agora e sobre o desafio de nos reconstruirmos em um espaço momentaneamente desabitado.
A pergunta essencial e a resposta como oração
Frequentemente, faço a mim mesma a pergunta essencial: “que tipo de pessoa quero ser diante da vitória e da derrota?” É tanto um exercício filosófico quanto uma preparação para o futuro.
E me respondo que desejo ser a pessoa que, ao vencer, não se intoxica a ponto de esquecer que o adversário é igualmente humano.
Quero ser aquele que não se deixa destruir pela derrota, mas entende que ela é um momento de pausa e de recomeço, não de resignação.
Quero não ter a vaidade de ouvir apenas a minha própria voz.
Quero vencer com generosidade e perder com graça.
Quero celebrar minhas vitórias, consciente de que são momentos fugazes; e que nem sempre estarei no controle e no pódio.
Quero ser a pessoa cuja verdadeira alegria reside em triunfar sem deixar cicatrizes nos outros.
Quero investigar incansavelmente quem sou e o que estou me tornando.
Quero que a derrota não me consuma, mas que me leve a revisitar escolhas, limitações e anseios secretos.
Quero enfrentar rejeição, fracasso e falibilidade de cabeça erguida, fazendo da derrota um aceno de paz para a minha alma.
Quero fugir do ressentimento e do revanchismo que tornam permanentes as feridas. Quero escapar da influência dos grupos que se veem como detentores de toda virtude, afogados em maniqueísmos, enxergando no outro apenas o inimigo odiado a ser derrotado.
Na vitória e na derrota, desejo encontrar o espelho que reflete o que realmente importa: como eu caminho, quem trago comigo e a graça que cultivo em cada passo.
▪ Texto originalmente publicado em soniazaghetto.com