O Decamerão ou Decameron (Abril Cultural, Tradução de Torrieri Guimarães, 1970) é um clássico da literatura, escrito entre 1348 e 135...

O corpo da mulher como objeto em Decamerão, de Boccacio

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O Decamerão ou Decameron (Abril Cultural, Tradução de Torrieri Guimarães, 1970) é um clássico da literatura, escrito entre 1348 e 1353, por Giovanni Boccaccio (1313-1375), num período turbulento da Idade Média, e que rompeu com a moral medieval de forte teor religioso, escandalizou a Europa e praticamente decretou o começo do realismo na literatura, que viria culminar com o humanismo alguns séculos depois.

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Decamerão: os jovens confinados narram suas histórias ▪ J.W. Waterhouse, 1916
Boccaccio inscreve como metáfora uma reunião de sete moças e três rapazes, de classe alta da sociedade, devidamente acompanhados dos seus serviçais, no campo, buscando sobreviver à catástrofe da peste negra que assolava Florença e, de resto, toda a Europa. Isolados, os jovens se divertem contando as histórias que compõem o livro.

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A história se desenrola num momento em que milhares de pessoas, certas da morte iminente, ou se entregavam à luxúria, ou vagavam pelos campos, fugindo do contato e do contágio, e buscando uma saída pela espiritualidade.

Para muitos, era como se Deus não mais existisse, deixando a humanidade à própria sorte. Nesse cenário, é razoável e oportuno observar o que pleiteia Michel Foucault, quando reflete sobre transgressões e limites, num tempo de caos e desolação:

"A morte de Deus não nos restitui a um mundo limitado e positivo, mas a um mundo que se desencadeia na experiência do limite, se faz e se desfaz no excesso que a transgride... E se fosse necessário dar, em oposição à sexualidade, um sentido preciso ao erotismo, este seria, sem dúvida, o de uma experiência da sexualidade que liga por si mesma a ultrapassagem do limite à morte de Deus."
FOUCAULT, 2006

Mas, é esse ambiente caótico que acolhe a construção das narrativas de Boccaccio, na voz dos jovens, que tratam os temas mais polêmicos com certa leveza, humor e algum sarcasmo.

As narrativas são apresentadas na forma de novelas, fábulas, parábolas e causos, de natureza cômica, escabrosa ou obscena, com desfecho moralista ou não, e fazendo referências a momentos históricos
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Giovanni Boccaccio ▪ 1313—1375
e personagens ilustres. Também se movem num terreno de ironia a certas práticas de alguns religiosos, dos costumes sociais e sexuais vigentes, mas como uma linguagem que persegue, podemos dizer, o entretenimento com elegância, com uma sutileza na composição textual. Porém, é o desejo, na verdade, que permeia as narrativas.

A gênese do livro se funda na iminência do caos, diante do colapso gerado pelo medo da morte, que rompe a autoridade constituída, num ambiente em que as pessoas, ante a desesperança no futuro, se pautam pela necessidade de fugir do mal a qualquer custo, e se entregam a extremos, à violência, à autoflagelação e ao isolamento.

Neste texto, vamos abordar a relação da sexualidade, num tempo de tantos interditos, com ideia da morte, que era uma referência fatal com o avanço da pandemia, que, estima-se, tenha dizimado um terço da população. As histórias abordam temas polêmicos como sexualidade, luxúria no meio religioso, dentre outros pecados capitais, tudo tratado com doses humor, utilizando uma engenharia literária, com a urdidura de uma crítica social mordaz, que decompôs de forma genial a sociedade da época e terminou por inspirar vários autores por séculos.

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Decamerão: Nona Jornada, décima novela ▪ Fonte: BNA
Há, entre tantas, a curiosa história, que trata da inaudita proposta do padre Donno Gianni de Barolo ao pequeno mercador Pedro de Tresanti, casado com “uma linda mulher”. O prelado dizia conhecer um feitiço que transformaria a esposa de Pedro numa égua de dia, para que pudesse transportar suas mercadorias (e ganhar mais dinheiro), voltando à forma de mulher, à noite, para compartilhar e trazer diversão ao seu leito. E Pedro acredita. Não só acredita como propõe o experimento.

E o que se vê? O prelado comanda a ação numa certa manhã, quando tudo preparado ele ordena, sob o olhar crédulo e esperançoso de Pedro, que a comadre Gemmata fique nua e de quatro, como as éguas. Então, passa a apalpar cada parte de seu corpo, falando num arrazoado de feitiçaria e indicando que aquela parte do corpo sob suas mãos seria transformada numa parte similar de égua. E assim prossegue até chegar às nádegas da comadre Gemmata, quando, narra Boccácio:

“Finalmente, não lhe restando mais nada a fazer, senão a cauda, ergueu a sua própria camisola e, segurando a estaca com a qual plantava gente, introduziu-a depressa no sulco feito para isso e disse: ‘E isto seja uma linda cauda de égua’... O compadre Pedro, que contemplara tudo com muita atenção todos os pormenores da marcha do feitiço, até então... berrou: ‘Oh! Donno Gianni não quero causa! Não! Eu não quero a cauda!’” Obviamente, já era tarde, “nesse ponto, já viera a umidade radical”.
BOCCACIO, 1970, Pág 502

O episódio está na décima novela constante da Nona Jornada (Emília) do livro.

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Decamerão: Nona Jornada, décima novela ▪ Fonte: Biblioteca Nacional da Áustria
Decamerão figura como uma das obras clássicas da literatura erótica. Mas, como se vê, pelo relato de uma de suas novelas mais conhecidas, e o que muito se evidencia no Decamerão é a utilização do corpo da mulher como objeto, como matéria-prima, com um significado de mero utilitário para o prazer do homem, com uma banalização que vai do abuso ao escárnio. No texto, a própria mulher se lamenta quando Pedro, assombrado com o momento derradeiro do feitiço, a colocação da cauda, acorda de sua estultice e manda o padre parar.

É também a mulher quem reage e recrimina Pedro:

“Meu Deus! Como você (Pedro) é besta. Porque foi que você estragou tudo, tanto os seus negócios, como os meus? Que égua você já viu sem cauda? Deus que me ajude! É certo que você é pobre; porém sem dúvida mereceria ser ainda mais do que já é.”

Ou seja, não apenas a mulher é usada como mero objeto, como ainda se sente ultrajada porque o marido não permitiu o desfecho da ação do padre. Essa cena final da novela parece, de fato, simbolizar o que o autor, e certamente não apenas ele, pensava sobre as mulheres.

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Decamerão: Nona Jornada ▪ Biblioteca Nacional da França
Em outra narrativa bastante conhecida, a quarta novela da Oitava Jornada (Laurinha), há o caso de um preboste (um magistrado e religioso), que se apaixona por uma viúva bela e rica, que recusa insistentemente seus apelos sexuais. Até que, certo dia, monta uma armadilha
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Decamerão: Oitava Jornada, quarta novela ▪ Fonte: BNF
e marca um encontro com o galante desesperado em seu quarto, no mais completo escuro. Só que, na verdade, quem deita com o preboste, por sua orientação, é sua criada (Pág 410).

Boccaccio detalha as características da criada de nome Ciuta:

“Não era muito jovem; tinha o rosto mais feito e mais contrafeito que se poderia supor; o nariz era como que esmagado e enorme; a boca, torta, com lábios muitos grossos e dentes mal alinhados, além de grandes; era vesga e jamais estava sem qualquer doença nos olhos; além disso, a cor de sua pela era esverdinhada e amarela... e tinha um focinho de cachorro.”

O final é bem ao estilo Boccaccio. O preboste é flagrado na cama da viúva. Mas, deitado com a Ciutazza. E quando se acendem os archotes, e o quatro é iluminado, os dois ainda abraçados, o preboste se assombra com a feiura da criada, e se lembra com amargura de todos os beijos da noite, e de como “cavalgara um tanto apressadamente” sobre aquela mulher tão feia (que imaginava ser a viúva), na sofreguidão de apaixonado, vítima de um engodo que será motivo de escárnio pelo resto de sua vida.

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Decamerão: Oitava Jornada, quarta novela ▪ Fonte: BNF
Aqui, é evidente a forma como Boccaccio, não apenas trata a mulher enquanto um instrumento usado para pregar a peça no preboste, mas também a degradação da mulher, uma criada, que apresenta como um monstrengo. De fato uma caricatura, que é relatada para a motivação do riso. E, tanto quanto a comadre Gemmata, também a Ciuta se encanta em ter pregado a peça no preboste, e ainda suspira como os prazeres carnais que obteve que de uma forma que, de outra certamente não obteria, já que era rejeitada por causa de sua feiura extrema.

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Decamerão: Oitava Jornada, oitava novela ▪ Fonte: BNF
Finalmente, para compor, digamos, uma cartografia necessária de compreensão dos textos que integram o Decamerão, quando avaliamos o detalhe da utilização do corpo da mulher como instrumento de narrativa em sua literatura erótica, é oportuno pinçar a oitava novela também da Oitava Jornada (Laurinha), que trata da vendeta de um amigo, ao descobrir que sua mulher o havia traído com seu vizinho e melhor amigo (Pág 439).

É o caso dos amigos Spinelloccio di Tavena e Zeppa di Mino. Zeppa flagra a esposa em adultério com Spinelloccio e monta um ardil para se vingar. Primeiro, ele obriga a mulher a confessar que manteve relações sexuais com o amigo. Em seguida, ordena que ela faça tudo que ele mandar, sob a promessa de um perdão. E, assim, monta um ardil, em que ela atrai Spinelloccio para seu quarto e o faz entrar numa arca, quando o marido Zeppa volta repentinamente para casa.

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Decamerão: Oitava Jornada, oitava novela ▪ Fonte: Biblioteca Nacional da França
Depois, faz com que sua esposa chame a mulher do amigo para almoçar, e então a conduz para o quarto onde o marido dela está, sem que ela soubesse da sua presença. Assim, Zeppa conta como executou a sua vingança, usando a mulher do amigo:

“Falando assim, abraçou-a e beijou-a, terminando, finalmente por deitá-la sobre a caixa dentro da qual o marido estava fechado. Zeppa esteve ali com ela (a mulher do amigo) o tempo que quis, satisfazendo-se ambos reciprocamente.”

O marido a tudo testemunhou.

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Decamerão: Oitava Jornada, oitava novela ▪ Fonte: Biblioteca Nacional da França
Mais uma vez, a narrativa que se vale da apropriação do corpo da mulher como um instrumento de satisfação, com aspectos notórios de banalização, para dar conformidade à moral da novela, topografado a partir do explícito consentimento da personagem feminina. Ou das personagens femininas. Uma que participou da urdidura da trama, a outra que cedeu o corpo para que um amigo se vingasse do outro.

Mesmo utilizando uma linguagem figurativa, num tempo em que a censura religiosa era extremamente vigilante, Boccaccio consegue transmitir os elementos capazes de acionar a imaginação do leitor para cenas fortemente sexuais.
Voltaremos à questão do uso do corpo da mulher como instrumento de narrativa. Há outra comunicação relevante em Decamerão, que remete à proximidade entre desejo e morte. Não se perca de vista que o livro tem como metáfora precisamente a fuga da ameaça de morte trazida pela peste negra. Segundo Luís André Nepomuceno, em seu artigo O Decameron e a peste como metáfora, que Boccaccio poderia estar pensando mais ou menos como Susan Sontag, quando refletiu sobre nossos sentimentos diante da dor dos outros.

E diz Sontag, em Diante da dor dos outros:

“Quando ainda não eram comuns às imagens diretas da realidade, pensava-se que mostrar algo que precisava ser visto, trazer mais perto uma realidade dolorosa, produziria necessariamente o efeito de incitar os espectadores a sentir – a sentir mais”.
SONTAG, 2008.

A dor também da submissão da mulher, ante um mundo fundamentalista do ponto de vista religioso, sob o império do patriarcado. A mulher estabelece praticamente uma relação de vassalagem com seu amo e, essencialmente, a serviço dos homens. Nas suas várias demandas. Inclusive literárias, como se vê.

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DecamerãoPokorného / Maška, 1938
Observa-se como em praticamente todas as narrativas, mesmo as mais moralistas, é o desejo que se insere como o elemento secreto capaz de estabelecer a liga da urdidura do texto. O desejo que supera a morte. O sufragar do Eros sobre o Tânatos. O desejo como elemento de sublimação até num cenário tétrico, em que se convive com a iminência da morte a cada momento. O desejo como magma criativo. O desejo, enfim, como a inspiração primeira do autor.

Também não podemos perder de vista, nesse contexto, as reflexões que faz Georges Bataille, em “O erotismo”:

“O espírito humano está exposto às mais surpreendentes injunções. De maneira incessante, ele tem medo de si mesmo. Seus movimentos eróticos o aterrorizam... a atividade erótica é, antes de mais nada, uma exuberância da vida, um objeto de uma busca psicológica.”
BATAILLE, 1998

Uma antítese da morte, portanto.

Mas, é oportuno observar também como a mulher, ainda que vivendo num período de “trevas”, como se diz, se não tinha protagonismo, apresentava certos traços que, séculos depois, Simone de Beauvoir, em seu livro O segundo sexo, iria traduzir tão bem em alguns de seus discursos sobre o corpo do homem e da mulher, a partir da criação de novos valores sexuais.

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DecamerãoPokorného / Maška, 1938
Entretanto, o mais importante a destacar aqui é uma relativa liberdade (limitada pelas convenções da época) que a mulher tinha sobre seu corpo, especialmente sobre usar o seu corpo. Ainda que vista como mero objeto, instrumento de narrativa para divertir e excitar.

O Decamerão, que se tornou um livro obrigatório, e se inscreveu entre os clássicos da literatura erótica, foi fonte de inspiração para muitos outros autores. Há quem diferencie Decamerão como obra da inscrição erótica e não pornográfica, compreendendo que literatura erótica seria o texto mais sutil, mais ligado aos negócios românticos do amor, e a literatura pornográfica, uma expressão do apelo sexual explícito.
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DecamerãoPokorného / Maška, 1938
Mas, em Decamerão, essa distinção não fica evidente, porque os textos são de uma outra ordem. No fim, o objeto final de fato é excitar.

Decamerão cumpre essa função dupla, o que torna difícil o estabelecimento de uma divisão entre o que seja, no livro, a literatura erótica e a literatura pornográfica. Mesmo utilizando uma linguagem figurativa, num tempo em que a censura religiosa era extremamente vigilante, Boccaccio consegue transmitir os elementos capazes de acionar a imaginação do leitor para cenas fortemente sexuais, como o caso do padre que penetra a mulher do compadre, a guisa de colocar uma... cauda. Se o texto tem algo de hilário, ante a estultice do compadre, também tem de sexualidade, com sinalização explícita de sexo, inclusive anal.

No capítulo sobre “O efeito obsceno”, do livro Perversos, amantes e outros trágicos, Eliane Robert Morais postula, a respeito de As relações perigosas, de Chardelos de Laclos, falando precisamente do discurso pornográfico:

“O método corruptor do libertino consiste precisamente na nomeação das posições sexuais e das partes mais secretas do corpo, valendo-se dessa “língua técnica”, cujos termos foram expulsos da decência”.
MORAIS, 2013

O que faz dessa passagem do Decamerão quase um sacrilégio, considerando os valores constantes da Idade Média. Com certeza, um ultraje.

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DecamerãoPokorného / Maška, 1938
Como diz Dominique Maingueneau, em Discurso Pornográfico (2010):

“Se tantos escritores reconhecidos tiveram passagens fugazes pela escrita pornográfica, isso não se deu apenas por razões de sustento, mas também porque literatura e pornografia se comunicam em profundidade. Uma e outra são discursos de fronteira, mais precisamente, discursos que brincam de fronteira.”
MAINGUENEAU, 2010.

Vale o registro desse testemunho importante da escritora Anaïs Nin, no pós-escrito do seu livro Delta de Vênus, onde ela pugna por uma abordagem diferente das mulheres em relação aos interstícios do sexo e que, certamente, ampliam os horizontes do entendimento sobre até onde se pode estender o alcance da literatura erótica:

“As mulheres, pensei, eram mais aptas a fundir o sexo com emoção, com o amor, e escolher um homem em vez de serem promiscuas... Embora a atitude das mulheres em relação ao sexo fosse bastante diferente dos homens, ainda não havíamos aprendido como escrever sobre isso”.
NÏN, 2005

Mas, apesar da disparidade de contexto, vale neste particular o contraste tão bem posto por Bukowski, em Textos autobiográficos, quando verseja:

“Recolho as luminosas contas negras do colar, esta coisa que uma vez se moveu em torno da carne, e chamo Deus de mentiroso, digo que qualquer coisa que como esta tenha se movido ou conhecido meu nome mas poderia morrer na verdade comum da morte, e eu recolho seu vestido amado, esvaziado do amor que dele emanava.”
BUKOWSKI, 2009

Poderíamos concluir, a partir dessas observações, como Decamerão, dotado dos elementos de suporte para o entendimento de suas ideias mais claras, pontua como uma narrativa que promove a salvaguarda do desejo (Eros) sobre a morte (Tânatos), mas também, e, sobretudo, privilegia o uso do corpo da mulher como instrumento de amálgama da tessitura literária com fins de diversão e excitação.

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  1. Hélder Moura7/11/24 11:03

    Obrigado, querida amiga.

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  2. Estou acompanhando um jornalista que fez uma página para lembrar da amada, prestigiar o amor que ainda traz dentro dele . Sua história, regada de fotos . A amada morre, o jornalista não foge da morte, ele mostra que o amor ainda é a coisa mais importante, ele ultrapassa a morte.

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    1. Helder Moura8/11/24 08:58

      Para agradecer por suas palavras. Meu abraço

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