Digamos que a vida é um ponto de vista. É um jeito de vê-la e tê-la. Pode ser gloriosa, ou inglória, a depender de quem você seja, ou onde e como esteja. Entendamos uma coisa. Aquele passarinho fofo, colorido,
canoro, é um monstro impiedoso para as lagartas, as minhocas e os insetos que engole.
Há bichinho mais belo e inofensivo do que uma joaninha, o besourinho com dois pares de asas, o externo endurecido, brilhoso e com pontinhos escuros? Pois bem, vá perguntar isso aos pulgões que ela devora. Joaninha usa antena para encontrar parceiros e alimentos e exibe suas cores em aviso aos predadores. É como se expusesse um cartaz de linguagem comum aos pássaros, sapos e lagartixas. “Ao me comerem, comem veneno”.
Já imaginou que seu jardim é um campo de batalhas terríveis e diárias? De bichos que se despedaçam sem dó nem piedade? Perdoem-me você e suas flores, mas aquilo é um inferno.
No topo da cadeia alimentar, nós, os humanos, não fazemos caso do que por lá acontece a todo instante. É joaninha a comer pulgão, escorpião a matar grilo, formigas ferozes à caça de presas e é sapo a papar tudo. Em nosso benefício, classificamos, nessa matéria, o que é bicho nocivo e útil. E, assim, decidimos o que presta e não presta.
Queremos pássaros por perto. Nós nos encantamos com seus trinados e suas asas. Adoramos quando em bandos eles circulam nas revoadas dos fins de tarde, não por acaso, quando os insetos noturnos alçam voos. Amamos as abelhas polinizadoras. Afinal, nossas rosas e frutas dependem delas. Queremos as borboletas que também transportam pólen, nos enchem o jardim e nos deslumbram com suas cores e beleza. Embora feios, suportamos os sapos, as rãs e as aranhas por sabê-los devoradores daquilo que consideramos prejudicial a vasos e canteiros. Mantemos boa distância desses bichos feiosos, mas os toleramos ao percebermos o quanto nos podem ser úteis.
Não é meu desejo ferir os brios de ninguém, mas o fato é que nós, os humanos, somos oportunistas e aproveitadores do que, circunstancialmente, nos seja de boa serventia. A humanidade em geral, minhas e meus amigos, nunca foi um bom exemplo para os bichos. É como se estes em quase tudo nos copiassem, no curso dos milênios. E não seria absurda a percepção disso tudo pelo avesso: nós os imitamos, dado que somos a última das criaturas surgidas na face da Terra.
Agrava-nos o fato de que eles, irracionais, se devoram não em proveito pessoal, mas para a continuidade e a evolução de suas espécies. Não sabem de outros modos para a sobrevivência pacífica e duradoura. Conosco, não. Somos dados por natureza à cobiça e ao domínio dos semelhantes, individual e coletivamente. Somos conscientes dos nossos acertos e erros.
As guerras e a escravidão têm a duração dos homens. E, espantosamente, já tiveram a ética e a moralidade das religiões e credos. Ultrapassada a era do paganismo, os processos de colonização, desde as caravelas, deram-se com a bíblia à frente e a espada atrás. No nosso caso, com as bênçãos do Frei Coimbra, aquele da primeira missa. Todos sabemos de um tempo em que, para as igrejas, o enorme contingente de indígenas e africanos capturados e escravizados não tinham alma.
Transcorrem os dias em que nós, habitantes do Terceiro Milênio, ainda fechamos os olhos para a injustiça, a miséria e a fome dos desvalidos, a não ser que disso padeçamos, de modo direto. Penosamente, tenho dúvidas sérias em relação ao cumprimento dos tratos pela paz, pela nutrição e pelo equilíbrio climático firmados por líderes planetários, tal como há pouco se deu na cúpula do G-20, o grupo das vinte maiores economias do mundo então reunido no Rio de Janeiro. E não estou a menosprezar este esforço que louvo e aplaudo. Minha desconfiança prende-se ao que virá depois das assinaturas daquele documento.
Perdão pela amargura e pela descrença no ser humano feito, segundo preceito bíblico, à semelhança física com Deus. É que ainda sofro o impacto da recente notícia acerca das amputações de crianças e dos partos cesarianos sem anestesia no palco de uma guerra moderna aonde a ajuda humanitária não pode ir nem entrar. Que bicho de selva e jardim permitiria isso, tivesse um milésimo do livre arbítrio que nos foi concedido?
Bem-aventurados os crentes, os seguros de que habitamos, temporariamente, um planeta de expiação e aprimoramento e de que passaremos desta para melhor, ou pior, na conformidade dos nossos atos. Aviso que esta não é, exatamente, a minha crença e, portanto, agonizo a cada uma dessas tragédias, a cada repetição desses crimes contra a decência, a civilidade e a compaixão.
Culpo-me por somente perceber, em sua dimensão completa e brutal, a crueldade das bombas sobre homens, mulheres e crianças quando me informam de amputações em bebês a cru. Desgraçadamente, é sempre assim: compadecemo-nos, em particular, das dores alheias quando a elas associamos nomes, caras e gritos. Não nos indignamos, tanto o quanto deveríamos, com a generalização, a repetição e a amplitude das guerras. Quando muito, decidimos, à luz pálida das nossas convicções, quem são os mocinhos e os bandidos.
Sinto, mas hoje não dá para falar de auroras, poentes, encantos e saudades. Hoje, descreio de todos nós, que, geração após geração, permitimos isso. E que inertes acompanhamos, agora mesmo, os preparativos da terceira e última guerra mundial, posto que trarão, se consumada, a explosão de ogivas atômicas.
Hoje, somente dá para lamentar a má índole, em grande escala, das pessoas. E a má sina dos bichos no único mundo de que dispomos.