Publico aqui um texto que escrevi há algum tempo "A XÍCARA DE CHÁ" para saudar e celebrar a sul-coreana HAN KANG, NOBEL DE LI...

Celebrando Han Kang, Nobel de Literatura 2024

han kang cha austria
Publico aqui um texto que escrevi há algum tempo "A XÍCARA DE CHÁ" para saudar e celebrar a sul-coreana HAN KANG, NOBEL DE LITERATURA que comemorou o prêmio tomando chá em silêncio. Há certa nobreza na civilização do chá e o silêncio é um dos componentes do ritual. A arte da cerimônia do chá é rica em tradição convivial e se tornou uma ponte entre culturas. Longe de nossos hábitos desconhecemos a enorme variedade, a origem, as classificações, a prática da degustação, e o longo percurso que fez para chegar ao Ocidente.

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@sortiraparis.com/
Em Paris a casa MARIAGE-FRÈRES desde o século XIX oferece grande variedade de chás em belas embalagens. Podemos tomar o chá numa atmosfera de intimidade poética em belos aparelhos de chá, peças de cerâmica originais, ou belos bules em estanho. Li que no Oriente a arte do chá é tida como a expressão da mais alta civilização e traduz a arte de viver. No Japão é uma atitude filosófica. O autor Gil Messias escreveu um belo texto sobre HAN KANG: “só a reação serena de festejar tomando chá já justifica, segundo ele, a outorga do prêmio, não tivesse ela escrito livros que segundo a Academia Sueca, “inovaram a prosa contemporânea”. Nada de algazarra do mundano e previsível champanhe que outros elegeriam para momento tão festivo, mas a sóbria ancestralidade do chá e o recolhimento do silêncio, símbolo de modéstia, de reflexão e, quem sabe de oração.” diz Gil Messias.

“Não me interesso em absoluto pela imortalidade, mas me interesso pelo gosto do chá.” De um Poeta chinês do século VII.

Lembro-me de um dia já muito distante que fui ao encontro de uma velha senhora na Baviera. Ela morava num antigo castelo da Floresta Negra num vilarejo no topo de uma colina chamado TITTMONING. O castelo em seus tempos de glória havia acolhido o compositor Wagner, agora vivia apenas de
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Ammerseer
suas lembranças, e uma atmosfera de declínio o envolvia em luzes e sombras do passado.

À nossa chegada o crepúsculo e alguns raios de sol inundavam o grande salão cujas janelas davam para um jardim que a vista prolongava até a floresta. Em seu vão central ainda estava lá o piano que o compositor tocara. Percorremos inúmeros aposentos ainda repletos de pinturas, estatuetas, mesinhas, espelhos, porcelanas, tapeçarias e cristais, embora minha lembrança desses aposentos não passe de um borrão, até penetrarmos em outra área menos pomposa do castelo e chegarmos a uma sala em que mantinham uma chaleira aquecida sobre um aparelho de calefação. A velha senhora nos recebeu ali, vestida com esmero, cabelos presos, olhos atentos e gestos suaves, convidou-nos a sentar em volta de uma mesa para um chá. Sua voz embora denotasse forte sotaque com suas duras consoantes da língua alemã, era suave e conseguia expressar-se num francês de fácil compreensão. Serviu-nos cumprindo um ritual ao qual estava habituada. A economia de seus gestos alcançava a perfeição. Ritual em que nos fez mergulhar sob o efeito de certa magia.

Ela ocupava-se em nos servir e parecia fazer disso uma verdadeira arte. Com movimentos precisos e delicados cuidava para que a água não fervesse, dizia que alteraria a qualidade das folhas do chá. Observava pausas, esperando a temperatura certa da água na chaleira para derramar a seguir no bule controlando a infusão até o aroma espalhar-se por
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Rachid Oucharia
todo cômodo. O chá era oferecido puro, sem açúcar e sem limão. Ela, entretanto, o acompanhara com bolinhos de mel e amêndoas.

A cerimônia do chá desenrolava-se num quadro próprio do ocaso de um luxo de outrora com seus ares de melancolia, de cores esmaecidas que pareciam acentuar a beleza tornando-a até mesmo eloquente. Os gestos simples daquela senhora me faziam pensar como transformava tudo em poesia. Pensei ainda que, se conseguia era porque a perfeição devia residir na simplicidade. Era ela a verdadeira elegância, essa simplicidade que apenas certas criaturas possuem. Tudo nos fazia lembrar que aquele precioso líquido castanho e dourado fazia parte de uma antiga civilização cujos preceitos, parecia, estávamos naquele momento sendo iniciados.

Lembro até hoje de minha viva impressão como aquela senhora conseguia manter dois jovens de vinte anos em torno de uma xícara de chá num clima de encantamento. Versava sobre as qualidades do chá, dizia que era a bebida mais antiga da humanidade cujas propriedades curavam, acalmavam, alimentavam; que era preciso uma água pura, sem ferrugem nem calcário para não intervir no sabor.
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Ahmet Kurt
A velha senhora nos falava de certas lendas, como a de um mercador inglês que se perguntara: “Não é estranho que de tão longe nos tenha chegado essa cultura, e que a humanidade tenha se encontrado em torno de uma xícara de chá?”

O chá não fazendo parte de nossos costumes era natural que fôssemos todo ouvidos. Mas aquela senhora sabia que a arte do chá consistia menos na bebida que num certo jeito de compartilhar e para atar aquele fio também ela deveria ouvir e assim nos incitava a contar nossas histórias.

Talvez essa seja a minha mais remota lembrança de uma calorosa cordialidade na arte de receber.

Lembro-me do amanhecer no castelo, dos esquilos no jardim, da luz filtrada fazendo caminho entre as folhagens. Da caminhada a pé pela floresta, a travessia de uma pequena ponte que ao final dela devíamos mostrar nossos passaportes para entrar em solo austríaco. Me lembro do meu assombro ao perceber que do outro lado da ponte era a Áustria. Que da Baviera ia-se a pé para outro país. Lembro ainda do restaurante do vilarejo e que foi ali a primeira vez que provei o “gulash”.

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Floresta Negra @reddit
Lembro especialmente do gesto daquela senhora cuja hospitalidade deixou em minha memória um halo semelhante ao de uma pintura flamenga do século XVII na qual eu mesma integro a cena como um dos personagens que ali esteve e que só um Veermer reconstituiria aquela atmosfera de intimidade e encantamento. Nada lembro do mobiliário dos aposentos do castelo. Como se o tempo houvesse apagado todo o cenário, quão majestoso tenha sido, cabendo somente àquela senhora sobreviver em minha memória que doravante a faço reviver e a torno criatura eterna.

“Bebe-se o chá para esquecer o barulho do mundo”, murmurava um velho chinês. Bebe-se o chá para se reunir e contar histórias. Bebe-se o chá para unir as pontas do destino dos homens. A xícara de chá da senhora da Baviera teceu com fios de ouro as minhas lembranças e esta história que ora conto para a tela luminosa.

Muitos anos depois meu ex-marido me esclareceu que aquela senhora era berlinense e fora uma ativista e muito amiga da filósofa Rosa de Luxemburgo.

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  1. Belas memórias de uma bela experiência, Lúcia. De certa forma, despertadas pela sábia frase da escritora ganhadora do Nobel. Eis aí o poder das palavras - e da literatura. Viajei agora com você a esse castelo da Alemanha, imerso em suas tão suaves recordações. Obrigado pela citação deste escriba aldeão. Parabéns e um grande abraço. Francisco Gil Messias.

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    1. Grata por estas palavras poeta. Muito gentil, fico honrada e muito feliz vindo de você, um escritor que muito admiro. Um abraço, Lúcia

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