É fato: reduziu-se, consideravelmente, o vocabulário do povo brasileiro. Hoje ocorre uma espécie de desconstrução máxima da lingu...

Capitu, a Mona Lisa brasileira

machado assis capitu
É fato: reduziu-se, consideravelmente, o vocabulário do povo brasileiro. Hoje ocorre uma espécie de desconstrução máxima da linguagem, que se vê literalmente dilapidada, através de diversos tipos de cortes, recortes, elipses, alterações, adaptações e mutações alienígenas.

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Eis que a juventude cibernética, ancorada nas premências da celeridade, recorre, na digitação das mensagens de E-mail, WhatsApp, Twitter entre outros, às adequações que julga imprescindíveis. Para tal, utiliza um espectro vocabular pobre, de sinópticos verbetes. E promove a ablação de partes constitutivas das palavras, como desinências, sufixos e por aí vai. Tudo em nome do pragmatismo imposto pela pressa congênita dos dias atuais.

Visa-se, voluntariamente, alcançar o reducionismo discursivo. Procede-se a um encolhimento, à amputação de palavras ou partes de um vocábulo. Corrompe-se, assim, a inteireza do próprio texto, transformado em verdadeiras mensagens cifradas e telegráficas.

Na verdade, surge um novo código linguístico. Uma espécie de dialeto. Uma injunção dos tempos atuais, atrelados ao império da urgência a contaminar tudo e todos. Consequência da celeridade ditada pela tecnologia de ponta e pela comunicação virtual proporcionada desde as primícias da internet.

Eis que, de tanto escrever “nois” em vez de “nós”, no intuito de evitar a “perda de tempo” de colocação do acento agudo, muitos jovens das gerações recentes acabam adotando o primeiro.
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Povoam de formas não dicionarizadas as redações escolares e omitem expressões de ligação. Determinam uma ciranda de erros ortográficos, aliados à supressão de elementos de coesão e conexão entre as ideias.

Doutra parte, é de se notar que alguns terminam naufragando na ilusão do assim considerado fácil ou rápido. Não raro, ao invés de facilitar, os tais mecanismos de facilitação e celeridade acabam tornando ambígua a comunicação. Senão, vejamos: “Tb” significaria “também”, ou “tudo bem”? E por aí vai...

Contudo, nem toda a magia do vernáculo tradicional se afoga nas marés dos novos tempos. Afortunadamente, na contramão desse circuito de verdadeiras intervenções cirúrgicas do idioma, textos escritos em português castiço resistem.

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Em meio ao que alguns chegam até a apontar como um caos linguístico, sobrevivem escritores que se consagraram, exatamente, no manuseio do português apurado. Sua dimensão literária se situa na direção oposta a todos os conceitos impostos pela geração dos tablets, laptops, micros, smartphones e outras joias da tecnologias de ponta.

Assombra a escritura portuguesa e de todos os idiomas uma engenhoca denominada Google Glass. O seu uso prescinde do alfabeto ou dos conceitos de pictografia, ideograma etc. Trata-se de uma revalorização do discurso meramente verbal.

Estarrecedor ou magnífico? Conquista ou retrocesso? Marcarão os novos horizontes uma abolição da palavra escrita? Regressaremos aos tempos anteriores à invenção da escrita?

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Enfim, desaprenderemos a ler e a escrever?

Entre os perfeccionistas do vernáculo que mantêm o seu cetro e a sua coroa, encontra-se, obviamente, Machado de Assis. Até hoje, nada arranhou a inteireza e a elegância da sua linguagem. Inquestionável é o carisma desse bastião da estética literária e correção textual, mesmo numa época em que o discurso escrito se torna tão coloquial e reducionista.

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Machado de Assis ▪ 1839—1908
Com efeito, esse autor transcende os tempos. Romancista, contista, poeta, dramaturgo, cronista, jornalista e crítico literário, a sua obra é tão universal que, embora proveniente do século XIX, consegue a proeza de conservar um ethos de novidade e contemporaneidade. Quase um milagre, por assim dizer.

Inquestionável é o seu mérito criativo e estilístico. Nenhum escritor brasileiro do passado ou do presente possui, como ele, uma unanimidade tão evidente. E olhe que a linguagem machadiana, essencialmente castiça e burilada, de técnica narrativa irretocável, não é nada fácil ao cotejamento do leitor. Sobretudo, quando se trata do receptor de hoje, ele próprio acostumado – não raro, inconscientemente – a torturar a língua vernácula.

Seja na dimensão da linguagem, da semântica ou do imaginário, Machado de Assis é um mestre. A aura profunda e densa a revestir a sua escritura se mantém intacta. Pois o escritor é exímio em toda a dimensão do fazer literário, desde a escolha ao manejo das palavras, como também no labor de proceder à sua interrelação gramatical e estilística.
Machado de Assis resiste e reina. Celebrado em todas as faixas etárias, é lembrado em rodas literárias ou não literárias, citado sob quaisquer pretextos, até mesmo em mesas de bar.
Assim, os alicerces bem sedimentados de sua tessitura vertical não sofrem com as tentativas de arranhões perpetradas pela objetividade de chips e pen drives.

Absoluto, ele permanece na criação de temas e elaboração de entrechos sofisticados. Suas reflexões psicologizantes refletem a complexidade da alma humana. Símbolo de elegância literária, sobrevive, incólume, em meio à panaceia tecnológica e tecnicista que não cessa de produzir novas peças e... de ensejar renovados assaltos à língua brasileira.

Machado de Assis resiste e reina. Celebrado em todas as faixas etárias, lembrado em rodas literárias ou não literárias, citado sob quaisquer pretextos, até mesmo (ou principalmente) em mesas de bar.

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Nesse contexto, nasce e renasce, invariavelmente, Capitu. Eis uma personagem que, a exemplo da Mona Lisa, de Leonardo da Vinci (século XVI) segue eternamente viva, na esteira do enigma e na aura do mistério.

Se a Gioconda se perpetua pelo sorriso, Capitu se eterniza pelo olhar. Delas emana um quê de secreto, subjaz um élan de mistério. Ambas paridas no talento artístico e na compreensão arguta da ambiguidade do ser. Reflexão é fundamental. Sensibilidade é preciso.

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Não obstante a mudança dos usos, costumes, tradições, modismos estéticos e visões de mundo, ninguém ousa desentronizar esses dois monstros sagrados. Eis que a passagem dos séculos não desvaneceu a beleza e integridade de sua obra. Continua a alçar píncaros elevados, seja no conceito dos mais abalizados críticos, seja na interpretação ingênua da recepção mais desarmada.

Pese às demais criações extraordinárias da produção de ambos, o certo é que voam, sobretudo, nas asas dessas duas indeléveis protagonistas. Duas personagens gloriosas, frutos do sortilégio da criação. Musas a vencer os tempos.

A Mona Lisa erigida na genialidade da magia pictórica, desenhada e pincelada na perfeição dos traços, tintas e cores magistralmente fundidas e plasmadas pela alma de um artista. A Capitu construída no feitiço da palavra exata, pinçada no éden do imaginário, pensada, lapidada, distribuída, elaborada e confabulada pelo sensibilidade de um Escritor.

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Leonardo da Vinci ▪ 1452—1519
Descritas ou desenhadas, ambas transmitem uma doçura cativante, mas, igualmente, uma força tão acachapante, que beira a violência. Aparentemente frágeis pela sua condição feminina, emanam uma energia intensa, avassaladora. Seja no olhar, seja no sorriso, seduzem e agridem. Pecadoras e sublimes, capturam, agarram o receptor pelos sentidos, mas também pela sensibilidade. Assim, a catarse vem tão estética como emocional.

A tal ponto se amalgamam as personagens a seus autores, que não se os concebe sem elas, ou essas sem os seus criadores. Vejamos: seria factível imaginar um Da Vinci sem a Gioconda, tesouro do Museu do Louvre? E, do mesmo modo, teria Machado de Assis a mesma repercussão em nossos dias, sem a emblemática, amada e odiada Capitu?

Isso nos devolve ao status quo da contemporaneidade. Massificação alucinada a cuspir novíssimas invenções a cada dia. Tempos profícuos a transmitir a falsa sensação de que tudo já existe à priori. Época que anseia se reidentificar. Que tem horror ao déjà vu. Que sai em busca desesperada de uma originalidade atávica e utópica.

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Tempos que, em última instância, apelam para a banalização da arte. Obras ditas artísticas são criadas, recriadas, substituídas, reinventadas e multiplicadas no ritmo alucinante de convulsões estroboscópicas.

E então, seria verossímil que brotassem os mais absurdos vieses da distorção. A expressão “B0sta”, em um passe de mágica, viraria um poema magistral, originalíssimo, a fazer jus à aclamação da crítica universal. E a mesma “b0sta”, in loco, palpável, em decomposição e coberta de moscas, auferiria ao brilhante artista plástico que a expusesse no museu, um respeito unânime pelos mais seletos curadores.

Diante dessa gloriosa alquimia de valores, o que nos reservará o futuro?

Vishnú! Vishnú! Vishnú, preservarás a verdade da arte e a magia do criador?

Fala!

O teu silêncio submerge a minha alma e a tela do meu laptop.

Mas... Sou um vate! No meu silêncio germinam versos e vaticínios.

Prenuncio que o aroma das flores sempre cativará mais que o estrume. Portanto, a exemplo da Gioconda, a Capitu não deve temer o esquecimento. Passarão as eras, e Machado de Assis ainda estará lá, ostentando, por todo o sempre, os olhos de ressaca de sua heroína-mor.

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