Havia naquele fim de tarde um vento estranho. Forte, penetrava com intervalos inexplicáveis nas janelas, sacudia o interior das casinhas, balançava roupas e fantasmas das pessoas. Não trazia chuva, só uma fina poeira que se impregnava em tudo que tocava. Do rosto entristecido de um quadro na parede à superfície da mesa no canto da sala, do enfeite dependurado num armador de rede às garrafas de vinho enfileiradas como ornamentos ébrios num aparador...
Canalizado, aquele vento, feito bloco carnavalesco pelas ladeiras históricas, subia e descia a sala, os quartos, os corredores como quem vasculhava os presentes e ausentes da residência das antigas ruas. O vento entrava, circulava e voltava à rua...
E soprava em todos os recantos. Fantasmagorizava as cortinas, derrubava porta-retratos de seres bons e maus presentes ou ausentes, lançava distante papeis esquecidos sobre mesas e armários.
Lá fora, senhoras respeitáveis já se sentaram numa cadeira de balanço no terraço para tricotar palavras e costurar fofocas. Era mais fresco o exterior das casas, onde o vento rodopiava como um capoeirista no meio da via pública.
E seguia através dos moleques de retorno da escola, dos trabalhadores que se recolhiam de volta à morada com pacotes de pão e leite à mão e até os enamorados engomadinhos em busca de sonhos palpáveis pelo vento.
Era meados do ano e o Sol abatia-se mais suave sobre as pessoas e coisas. Criava réstias caminhantes com um quê de poesia, demarcava sombras com menor insistência pelos caminhos, deixava chegar o sopro pelo caminho e construir novos cenários com o tempo.
O sopro transportava folhas de um canto a outro, redecorando o tapete natural pela praça vizinha. E, na imensidão do mar do céu, arrastava trilhas de nuvens viajantes, outra decoração de formas intocáveis pelas estradas aéreas. E o vento invadia as pessoas ao tocar pele, olhos, sorrisos e atingia seus interiores. Fazia circular sangue e aplacava faltas. Acompanhava as idades, os movimentos do corpo, os pensares das mãos, a correria da mente. Escondia e revelava, era transporte, condutor e passageiro ao mesmo tempo.
O vento também penetrava pelas laterais da última morada, zunindo talvez sussurros, segredos dos que se foram. Era como se mudasse após atravessar os portões de ferro. Ficava mais pesado, como que criasse resistência para a troca de vida.
O vento ora caminhava, corria e por vezes se escondia. Era um ser que zunia na virada para a noite, guardava histórias, armazenava segredos, para depois espalhar-se em canto indecifrável pela vizinhança.