Nunca vi uma pessoa para gostar tanto de café quanto eu. E isso, desde criança.
Quando voltávamos do curral, depois de tomar o leite no "pé da vaca", me deitava esperando a casa acordar e o movimento da cozinha começar, não por sentir fome, mas pela hora da liberdade. Depois do café, podíamos sair para brincar. Era a hora de mergulhar num mundo mágico, só visto por nós. O cheiro do café, que era torrado e depois pisado no pilão, tomava conta de todos os espaços da casa. Com ele vinham os cheiros de milho cozido e bolo, de pão assado e queijo, de cuscuz feito com milho moído na hora, e de queijo de manteiga tirado direto do tacho. A farofa feita com suas raspas ficava para o almoço, e o cheiro dela era maravilhoso.
Coalhada escorrida, coisa boa, mas o azedo do soro que pingava do saco onde ela ficava era bastante desagradável e fedia. Eu preferia a coalhada fresquinha sem escorrer.
Colocava rapadura ralada para adoçar. O cheiro da manteiga feita da nata era inconfundível. Ela com o beiju, que vinha quentinho da casa de farinha, era de comer sem parar.
Uma coisa me deixava triste: "Criança só pode tomar café com leite", diziam os adultos. Café puro, só para eles. Às vezes, quando ninguém estava olhando, tomava um pouco daquele delicioso extrato do cafezal.
"O leite tira o gosto amargo e único do café", argumentava para a cozinheira, quando me pegava fazendo tal traquinagem. Nunca me dedurou. Sabia como era bom. Lembro dela de vez em quando. Possuía um olhar meigo, acolhedor, sempre pronta para nos servir a melhor comida.
Na verdade, não foi por causa das brincadeiras depois do café da manhã que o cheiro de café deixou sua marca em mim, mas pelo clima de harmonia que existia ao redor daquela mesa.
O café passou a representar um instrumento de união.
Acredito que seja por isso que adoro tomar café com pessoas amigas. Sempre pedimos café depois de um almoço, um jantar ou uma ocasião agradável, ou ainda para fechar os acontecimentos com esse sentimento de bem-estar.
O cafezinho é motivo para pequenos encontros e grandes momentos. As lembranças das marcas dos cheiros continuam povoando minha mente. Não sei bem como descrevê-las, mas é como uma cachoeira de imagens, vozes, músicas e cheiros.
* Excerto do livro de Ana Paula Cavalcanti, 'A marca de um cheiro', publicado recentemente (Editora Ideia), disponível na 👉🏽 Livraria do Luiz.
"Em seu livro "A marca de um cheiro", a escritora Ana Paula Cavalcanti se propõe ao desafio de passar essa mensagem, de transformar em palavras os odores que marcaram momentos importantes dos personagens. É Helena, que se confunde com a própria narradora, quem vai confessar: 'Os momentos da minha vida são eternizados pelo cheiro particular de cada coisa, pessoa, lugar'. Está aí a matriz que conduz a tessitura do romance."
(Helder Moura)
"Em seu livro "A marca de um cheiro", a escritora Ana Paula Cavalcanti se propõe ao desafio de passar essa mensagem, de transformar em palavras os odores que marcaram momentos importantes dos personagens. É Helena, que se confunde com a própria narradora, quem vai confessar: 'Os momentos da minha vida são eternizados pelo cheiro particular de cada coisa, pessoa, lugar'. Está aí a matriz que conduz a tessitura do romance."
(Helder Moura)