Hoje se completam 110 anos da morte de Augusto dos Anjos (Ver, neste portal, o texto “Última revelação”, em que registramos os derradeiros momentos do poeta). A propósito da data, vale a pena relembrar aqui alguns aspectos da sua inovadora poesia.
O “Eu”, de fato, representou um divisor de águas em nossas letras. Com ele, a literatura brasileira despedia-se do século 19 e entrava na modernidade. O livro apareceu num contexto em que, segundo o crítico Ferreira Gullar, “predominava’ a literatura ‘sorriso da sociedade”. Nessa época proliferavam conferências sobre temas como ‘Casar é bom... ‘ e, como réplica, ‘Mas não casar é melhor’.” Para o autor de “A luta corporal”, “... essa subliteratura era decorrência de uma concepção literária anterior que descartava as questões verdadeiras”.
A poesia de Augusto dos Anjos apresenta vários núcleos dramáticos. Um deles está representado pelo conflito entre razão e sentimento, ou cientificismo e espiritualismo. Como todos os intelectuais da época, o poeta vivenciou as dúvidas e contradições próprias do fim do século XIX e início do século XX, com o Positivismo ameaçando a crença religiosa e propondo um ordenamento social pautado, essencialmente, nas verdades da ciência.
No entanto, a poesia de Augusto dos Anjos “não se prende a um credo científico ou filosófico específico. Em vez disso, ela reflete uma visão de mundo profundamente pessoal e única, marcada por uma fusão de elementos científicos, filosóficos e existenciais”. (Wikipédia). É sobretudo um tecido de revelações inconscientes, em que sobressaem temores culposos, obsessão com a morte, fantasias ligadas ao destino do homem como indivíduo e como espécie.
Entre o fim do século 19 e o começo do século 20, conviviam entre nós estilos de época diferentes. Se havia novidades na prosa – com “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, ou “Triste fim de Policarpo Quaresma”, de Lima Barreto –, na poesia encontravam-se ecos retardatários do Simbolismo e do Parnasianismo, misturados a um poetar “científico” que refletia os postulados oriundos da Escola do Recife. Devido aos elementos novos que trouxe à literatura brasileira, não é de admirar que o “Eu” tenha chocado as sensibilidades ainda afeitas ao ideário parnasiano-simbolista. Augusto abria um novo horizonte quanto aos temas e ao estilo.
Seus críticos e intérpretes logo perceberam que estavam diante de algo novo. O poeta compunha em decassílabos, fazia versos rimados, mas adotava recursos que subvertiam a tradição lírica. Ao vocabulário tomado de empréstimo à filosofia e à ciência, aliavam-se o prosaísmo e as referências escatológicas. Incluindo o escatológico e o trivial em seus poemas, Augusto revelava-se um herdeiro de Baudelaire, para quem era importante “representar com exata clareza o inferior, o trivial, o degenerado”. Esse tipo de representação é uma das características da modernidade, que busca aproximar a poesia da experiência comum das pessoas.
Sobre o livro do paraibano, surgiram alguns equívocos. Um deles foi considerá-lo um bom poeta “apesar” da estranheza das imagens e do vocabulário inusitado. Os adeptos da “poesia científica” queriam talvez mais um versejador que se utilizasse da métrica e da rima (geralmente se confunde isso com poesia) para divulgar princípios e conceitos da ciência e da filosofia da época. Não compreendiam que em Augusto os termos científicos aparecem como imagens; valem justamente pelo que têm de estranheza, contundência semântica e impacto fônico-expressivo. Nisso está, em grande parte, a revolução que ele trouxe.