Tem sido assim desde que ela começou sua vitoriosa carreira de cronista e escritora. Escrevendo para as mulheres e educando os homens. Um compromisso que não poderia ser diferente, pois sua própria vida, independentemente da escrita, sempre marchou nessa direção: a afirmação e a valorização das prerrogativas femininas, a resistência e a boa rebeldia contra preconceitos arcaicos de província, e o saudável vanguardismo anunciador do que viria e teria de ser. Nela e em mais algumas poucas entre nós, 1968 e o que veio depois deixaram sementes férteis que não se perderam ao léu. Pelo contrário.
Essas coisas, o modo de ser e de estar no mundo, são inatas. Nasce-se com elas - e com elas se vive até o fim. Uns, tímidos; outros, ousados. Umas, conformadas; outras, insubmissas. E assim por diante. Cada qual ao seu modo, com os ônus e os bônus que isso acarreta. A nossa autora traz muito forte a sua, digamos, marca pessoal, sua identidade. Mas sem que isso a tenha transformado num estereótipo, num cansativo clichê de feminista militante. O que a diferencia de muitas é exatamente a temperança, o indispensável equilíbrio entre a utopia e o real, o feijão e o sonho, para usar a dicotomia que intitula o célebre livro de Orígenes Lessa. E aí reside sua sabedoria, essa capacidade de conciliar, na aldeia, o que se quer e o que se pode ter, o desejável e o possível. Entre o bêbado e o equilibrista, ela se divide sem ir ao chão.
Sobre seus livros anteriores a este agora lançado Mulheres – Escritos, Jardins e Uivos (Ideia Editora, João Pessoa, 2024), observei que traziam uma marcante presença de memorialismo, ou seja, que seus textos em geral tinham como ponto de partida ou de chegada suas vivências, principalmente as da infância, adolescência e juventude. Uma verdadeira psicanálise através da palavra escrita com sabor, verve e domínio formal. Talvez uma catarse literária, fonte, como sabemos, de tanta obra boa no mundo das letras. Esse apego às lembranças continua praticamente em tudo que Ana produz, o que empresta aos seus textos um valioso selo de veracidade. De fato, ela navega menos pelos mares da ficção que pelos da vivida experiência. Sua matéria-prima (e seu pano de fundo) é ela mesma, em toda sua riqueza plural, seus altos e baixos, alegrias e dores, conquistas e perdas. O que escreve é sempre uma destemida confissão de pensamentos, sentimentos e crenças, e o leitor acredita nela, concordando ou não.
Credibilidade. Eis o que ela possui para dar e vender. Duvidar, quem há de? Pois nela, sabem os que a conhecem mais de perto, não há contradição entre o escrito e o vivido, entre o dito e o pensado, entre o livro e a vida. Mas, como disse, pode-se concordar com ela ou não. Porque as pessoas afirmativas têm esse poder: o de, mesmo sem querer, provocar controvérsias – e não raro polêmicas. Principalmente quando as posições e opiniões desafiam, mesmo que de leve, o establishment, o status quo, as tradições obsoletas e insustentáveis, quando é o caso. Entretanto, Ana não escreve para afrontar quem quer que seja. Longe disso. Mas que não foge à luta, não foge. Nunca fugiu. E sempre pagou o preço pela coragem. Sem pedir desconto. Isso ela talvez fizesse nas antigas lojas de tecidos da Beaurepaire Rohan e da Aristides Lobo que tanto amava em tempos idos.
O título do livro, explica-o o texto homônimo de folhas 28/31. Lá encontramos “os jardins de nossas mães”, a que se referiu Alice Walker, “num de seus escritos mais inspiradores sobre a criatividade feminina através do cultivo de flores, jardinagens e do poder que adquirimos através dessa herança transformadora das nossas ‘mães jardineiras’”. E os uivos das lobas de que fala Clarice Pinkola Estés, quando aconselha às mulheres: “Acima de tudo sejamos espertas e usemos nossos talentos femininos...Coma, descanse, perambule nos intervalos, seja leal, ame os filhos, queixe-se ao luar, apure os ouvidos, cuide dos ossos, faça amor, uive sempre…”. Essas lobas estão presentes no desenho de Flávio Tavares que embeleza a capa do volume de 262 páginas. E, aqui e acolá, nas crônicas e artigos que compõem a obra.
Seus temas preferidos já os conhecemos e ela própria os enuncia: “a invisibilidade feminina, a pobreza feminina, o trabalho doméstico, as conquistas, os desafios e entraves, as opressões, descompassos, loucura feminina, o corpo feminino, aborto, família, triplas jornadas, a moda, a escravidão, violência contra a mulher, os filhos, os amores, o casamento, a escrita em si e, claro, a subjetividade”. As mulheres em suas múltiplas dimensões. Mas não só isso, porque sempre tem mais. Por exemplo, a cidade. Nem sempre como tema principal, às vezes apenas como pano de fundo, João Pessoa atravessa muitos de seus textos. E não é só como um mero cenário, mas como um personagem fundamental que contracena com a autora no palco de sua vida aldeã/cosmopolita. Às vezes me pergunto: Ana Adelaide teria sido Ana Adelaide sem o contexto pessoense: o bucolismo da cidade ainda calma, suas praias, seus personagens, sua cultura de província e até (ou principalmente) a tacanhice aldeã? E a propósito, quando se fala mal da província, é exatamente – e apenas - no que se refere ao seu intrínseco conservadorismo comportamental, por demais resistente às mudanças; porém, quanto ao mais, e segundo Gilberto Freyre, contraparente da autora, ela, a província, é o sal do Brasil. “O sal da cultura, o sal da moral, o sal da política”. Certíssimo. Pois nem só de Ipanemas e de Avenidas Paulistas se faz um país.
Uma afirmação sábia e importante que a autora faz, sem medo de ser feliz: “Quero dizer que sou feminista sim. E feminina também. Uma coisa não exclui a outra.”. Claro. Mas quanta gente boa não acha que sim, que uma coisa exclui a outra necessariamente... Também contra esse lamentável equívoco luta a lúcida Ana, enquanto, para espanto de muitas companheiras, usa batom vermelho, salto alto, fru-fru e decotes. Sem medo de ser feliz, repito. E sempre respeitando quem pensa e age de outra forma.
Por outro lado, vê-se que sua bem-sucedida trajetória tem uma explicação que se impõe: seu apego a livros e filmes, além da vida acadêmica. O que prova que a cultura fez e faz diferença. Sem ela, talvez a jovem cronista de voluntários cabelos brancos estivesse hoje condenada à mais cruel “invisibilidade”. Entre seus ídolos, compreensivelmente se destacam as escritoras: Simone de Beauvoir, Rosiska Darcy, Elizabeth Batinder, Clarice Lispector, Marina Colassanti, Virgínia Woolf e Maria Valéria Resende. Mas também, viva!, há espaçoso lugar para Rita Lee e Bob Dylan.
“Pra elas e por elas”, Ana afirma que escreve. Sim. Mas para os homens, idem, ressalto. Para que eles se eduquem, se transformem, evoluam e deixem para trás o brucutu de sempre, o arrogante “macho alfa” de sempre. Para o bem deles mesmos, diga-se. Pois, como ela conclui, veemente, em suas confiantes palavras introdutórias, “O futuro é Feminino!”. Inapelavelmente feminino, digo eu, torcendo, de verdade, para que ela esteja certa.