Haverá quem ouse negar que o Nordeste brasileiro alberga um vasto manancial de criações de comprovada importância artístico-literária? Dificilmente. Muitas delas, inclusive, alçam-se, reluzentes, ao topo da literatura nacional. O segredo desse reconhecimento pode estar contido, em grande parte, na atraente e abundante temática de inspiração nordestina. Ela possui o condão de imbricar a cultura regional – enfatizando o mito de um Nordeste a um tempo guerreiro e sonhador; à cultura universal – dos anti-heróis e dos briosos cavaleiros medievais que precederam o Barroco. Quiçá, por essa razão, se costuma apostilar que, de um certo modo,
o imaginário, bem como a visão de mundo da Idade Média, nunca deixaram de vicejar no Nordeste, sobretudo no sofrido sertão. Ali, a carência de tudo se vê compensada por uma vasta dimensão de magia.
Eis que, no plano da realidade em vigor no século XIX e início do século XX, abrolhavam bandos de cavaleiros vingadores, verdadeiros heróis trágicos, os quais galopavam pelos caminhos empoeirados do interior. Os assim alcunhados de cangaceiros eram, tal como os heróis medievais, orgulhosos, valentes e atrevidos. Por isso, cercavam-se de uma aura desenhada nas cores do triunfo e carisma dos vencedores. Angariavam, consequentemente, o respeito e uma forma torta, extrajurídica, de autoridade, legitimada, por assim dizê-lo, através de seus atos e incursões de resultados exitosos. Temidos pelos campesinos, incutiam medo na própria polícia das cidades e nas comitivas de soldados designados para irem ao seu encalço, e que por esses fora-da-lei eram denominados, depreciativamente, de macacos.
Ferozes e sanguinários, os cangaceiros eram, paradoxalmente, crentes fervorosos. Sob o bastião da fé, não se importavam com o desconforto, o cansaço ou, até, a morte. En passant, o mesmo se dava no que tange aos cavaleiros medievais do além-mar. Esses, antes de uma missão, juntavam às armas as suas orações de uma inabalável fé católica e teocêntrica, não raro, ungidos com as bênçãos de um clérigo. A grande diferença entre os de lá e os de cá se centrava nas concepções de ordem subjetiva que os norteavam. Aqueles, nas suas batalhas, adjudicavam-se intenções altruístas, supostamente fundamentadas no bem, ou na conquista para o enaltecimento do seu rei e engrandecimento do seu povo.
Os cangaceiros, por seu turno, eram “justiceiros” que saqueavam, matavam, estupravam, (também formulavam pactos), sem maiores preocupações em nortear suas ações para o bem, nem muito menos para o crescimento e prosperidade de sua região. Se possuíam uma moral ou ética, era autorreflexiva, em seu benefício. É de se observar que, em vez das alegóricas espadas, flechas e lanças de antanho, seus instrumentos de combate derivavam dos tempos modernos. Consistiam no prosaico revólver, ou espingarda, além da indefectível faca-peixeira. Já na aparência do vestuário, em lugar da armadura e capacete de ferro, vestiam, à guisa de proteção, a não menos imponente indumentária e chapéu de couro, que até hoje constituem o símbolo de toda uma tradição cultural.
O mais notável dentre os cangaceiros nordestinos foi, segundo abaliza a maior parte dos pesquisadores, o famoso Lampião, cujo nome de batismo era Virgulino Ferreira da Silva. Esse nativo de Serra Talhada agigantou-se no espaço e no tempo, extrapolando o indivíduo e a sua pequena cidade do interior pernambucano. Não obstante as múltiplas atrocidades que veio a cometer, sua passagem deixou rastros brilhantes, profundos e indeléveis, a fascinar o imaginário popular.
Até hoje, ora o pintam como uma vítima do destino a executar uma missão de vingança, ora o enxergam sob a perspectiva de uma espécie de benfeitor dos pobres, posto que, eventualmente, repartia as pilhagens com os menos favorecidos. Nesse sentido, a história oficial foi atropelada pela recepção, compreensão e interpretação dos habitantes do sertão. Seu inconsciente coletivo transfigurou, fundiu e embaralhou os dados biográficos e as invenções, o real e o mítico; nas aventuras narradas oralmente e veiculadas através de rústicos folhetins produzidos na própria região.
Os mencionados textos, cognominados de cordéis, designação pela qual continuam mais conhecidos esses velhos e novos relatos, ainda se mantém editados, em plena contemporaneidade do terceiro milênio. Sua trama ou enredo é colorido, variado e pontuado de traços peculiares ao gênero do real maravilhoso, como variada, colorida e carregadas do real maravilhoso é a memória, o imaginário e a cultura nordestina. Em muitas dessas narrativas singelas, compostas no formato de estrofes e versos, emerge, justamente, o tema da figura indômita de um cavaleiro oriundo das plagas secas e áridas. Na fantasia da gente simples, desenha-se uma criatura torturada por uma sina infeliz, da qual não pode esquivar-se, nem muito menos fugir. Um triste ginete a seguir caminhos e trilhas desconhecidas, fadado a incorporar o eterno andarilho, em sua inacabável batalha, na busca do impossível.
Ainda nos dias atuais perdura o ideário desse homem valente, habitante de um Nordeste que sublima suas carências e dificuldades, munido de seu espírito audacioso e aguerrido. “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”, conforme, definiu, acertadamente, o eminente escritor Euclides da Cunha, na sua aclamada obra-prima, Os Sertões. Além disso, recorde-se que, como muito bem pontifica um dos mais clássicos e acatados provérbios nordestinos, “a esperança é a última que morre”. Efetivamente, quando a seca invade, vence e subjuga a terra e o homem, avassalando e destruindo tudo, ele acredita, piamente, que as coisas logo irão melhorar. Na sua filosofia sincera e pueril, imagina que, um dia, “o sertão vai virar mar”, em consonância com o que vaticinou, na sua época, o bravo Antonio Conselheiro.
Com um pé fincado nas penosas agruras da terra, sua alma, entretanto, acalenta a certeza numa vida post mortem, com a garantia de um terreno para si no Paraíso. Fiel a Deus, Jesus e Maria, é, igualmente, devotado à sua gente e amorosamente fixado em seu chão. Inúmeros registros atestam que ele somente se afasta de sua terra mãe, se a morte estiver espreitando, através da corrosão ditada pela fome e pela falta d’água. Todavia, tão logo cai a primeira gota de chuva, reúne a família e os seus poucos pertences, e regressa correndo ao seu torrão dantes tão ressecado. Algum dia, o herói famélico vencerá a batalha, “se Deus quiser”, pois “Deus dará”, como reza a voz popular. Crível, desejado, procurado, o sonho desse povo tão modelado no medieval teocentrismo, não acaba jamais.
Episódios factuais demonstram que essa busca de um porvir melhor, que devolve os retirantes ao lugar onde nasceram, pode ser utópica. Ora, ao contrário do ingênuo prenúncio de bonança futura, observa-se que o interior nordestino está desertificando-se mais e mais, a cada dia que passa. Ainda assim, o valente estropiado não cai, nem desiste da quimera. Dentro deste contexto, é possível plasmar-se na garra e na coragem deste herói tupiniquim, o contraponto do cavaleiro espanhol, Don Quijote de la Mancha, fruto da imaginação fecunda de Miguel de Cervantes.
Expoente máximo da literatura espanhola e mundial, Miguel de Cervantes Saavedra, nascido em 1547, em Alcalá de Henares, e falecido em Madrid, foi escritor, romancista, poeta e dramaturgo. Quando o seu protagonista desembarca no outro lado do oceano, sofre, por assim dizer, uma transformação. Eis que, num fenômeno de nordestinização, germina em plagas sertanejas esse outro Dom Quixote, parcialmente metamorfoseado, tanto no que diz respeito à forma escrita, como à tradição local, resguardando, porém, a sua essência original.
A comparação, pese à aparente incoerência sugerida pela distância geográfica e pelas injunções culturais entre Europa e América do Sul, é, contudo, factível. Ambos – tanto o Don Quijote ibérico, como o Dom Quixote nordestino – empunham suas valorosas armas para lutar contra os seus respectivos moinhos de vento, crendo, firmemente, numa vitória final. Um e outro transitam pelas sendas de um entorno seco e hostil. Não obstante, a fé os une. É a seiva que sustenta o seu existir.
Há que se enfatizar que, a exemplo dessa paisagem ressecada, tipicamente nordestina, La Mancha – província por onde cavalga o célebre personagem cervantino – encontra-se também no interior, caracterizando-se por ser, igualmente, uma região seca. Localiza-se na Comunidade Autônoma de Castela, no centro do território espanhol. Estende-se por quatro províncias, abarcando as de Albacete, Ciudad Real, Cuenca e Toledo. Com uma extensão de mais de 30.000km2, constitui-se uma das mais extensas regiões naturais da Península Ibérica.
A testificar o supradito com relação à aridez da região, está o próprio topônimo “Mancha”. Ora, o mesmo, na interpretação de abalizados especialistas, assinala uma procedência que repousa nas raízes árabes. Em consonância com essa ótica, tem-se que, etimologicamente, a expressão "Mancha" deriva do vocábulo árabe Manxa ou Al-Mansha. Encontra-se, deste modo, semanticamente associada à ideia de "terra sem água", ou "terra seca". Trata-se, pois, de um território caracterizado pelas escassas chuvas. Uma seca asfixiante se estende na maior parte do território, durante os abrasadores meses de junho a setembro. Nessa época se instala o alto verão, que coincide com temperaturas elevadas, provocando uma seca que atinge, em cheio, a região de La Mancha. Por isso, a comarca assim cognominada Castilla- La Mancha costuma ser incluída dentro do perímetro conhecido como "Espanha seca".
Paisagens da região de Castela La Mancha, Espanha ▪ Imagens: + Udri, Flckr
Sob essa perspectiva, é possível que ninguém ficasse intrigado se, de repente, arribasse numa esquina de solo sertanejo, uma magra e estropiada figura quixotesca. Um homem misto de derrotado e vencedor, na sua face de pobre de Jó, porém de coração valente. Um ginete sem pressa nenhuma, montado num esquálido cavalo, a perambular nas áridas plagas agrestes do nordeste brasileiro.Tampouco soaria muito estranho, se o igualmente cervantino e similarmente anti-herói, Pedro Urdemallas, aparecesse, sem mais nem menos, travestido de Pedro Malazarte. Um personagem que parece moldado e aculturado nas marcas da brasilidade. Um cara irreverente e gozador, de comportamento chistoso, a praticar as suas espertezas, vadiações e malandragens. Tudo isso, a se desenrolar em pleno cenário brasileiro, em plena paisagem nordestina, registrado nas histórias de cordel!
Outro personagem, Bernardo del Carpio, lendário herói espanhol da Idade Média, foi fonte de inspiração para obras de cavalaria em língua espanhola, tanto em prosa narrativa, como em poemas épicos. Chegou, inclusive, a constituir um projeto literário de Cervantes, que pretendia escrever El Bernardo, ideia esta que não veio a se consumar. Pois bem: o incrível é que Del Carpio resolveu cruzar os mares e ancorar em solo brasileiro, onde, cantado nos versos das histórias de cordel, veio a fazer muito sucesso entre a gente interiorana do Nordeste.
De fato, a literatura de cordel recebeu com simplicidade, naturalidade e gosto, a expressiva influência do Romanceiro Ibérico de cunho medieval. Evidentemente, os temas, personagens, ação e referenciais espaço-temporais, sofreram as necessárias adaptações, visando ajustar-se às terras tupiniquins. Assim, às especificidades de sua cultura de origem, foram incorporados usos e costumes, bem como aspectos e episódios históricos e sociais recentes da nova realidade que os acolheu. Se, por um lado, os heróis espanhóis do Medievo foram importados ao imaginário brasileiro, igualmente, Carlos Magno e os 12 Pares de França realizaram a viagem transoceânica até as terras brasileiras, adentrado o Nordeste e sua escritura popular. É mister observar que Os Doze Pares faziam parte integrante da elite pessoal sob a égide do rei Carlos Magno da França, formada por doze cavaleiros leais ao rei, liderados por seu sobrinho Rolando. Pois, seja conscientemente, ou pelas artes do destino, eis que também realizaram uma viagem transoceânica e renderam agitadas histórias de aventuras cavaleirescas épico-nordestinas.
Desde o surgimento do primeiro cordel brasileiro, provavelmente composto pelo enciclopédico paraibano, cantador de viola, Silvino Pirauá de Lima, nascido em 1848, em Patos, e falecido em 1913, em Bezerros, PE; passando por tantos que se seguiram, como o mais célebre, rei dos poetas populares do seu tempo, o também paraibano Leandro Gomes de Barros, dado à luz em 1865, na Fazenda da Melancia, no Município de Pombal, e finado em 1918, no Recife; e João Martins de Athayde, vindo a este mundo em 1880, em Cachoeiras de Cebolas, povoado de Ingá do Bacamarte, Paraíba, e falecido em Limoeiro (PE), em 1959 (para mencionar apenas paraibanos); as dicotomias sempre estiveram presentes ao longo dos relatos versejados. Na escritura se estabelece uma tensão entre o popular / erudito; o moderno / tradicional; o local / universal; o escrito / oral; a realidade / fantasia; o cômico / trágico; a história / invenção; o heroico / anti-heroico; e assim por diante.
Transcendental importância no resgate e/ou preservação dessa estética regional, sobretudo na questão de o popular se imbricar ao erudito, teve, sem dúvida, o paraibano Ariano Suassuna. Dublê de romancista, dramaturgo, poeta, ensaísta, crítico, professor da UFPE, palestrante e secretário de Cultura de Pernambuco, nasceu em João Pessoa em 1927. Residiu em Recife a maior parte de sua vida, falecendo nessa capital em 2014. No afã de conservar a tradição nordestina, idealizou, nos idos de 1970, o Movimento Armorial. Oficialmente fundado em Pernambuco, instituiu um marco que causou rebuliço nas mais diversas áreas artísticas, seja na música, seja na dramaturgia e na literatura. Sua proposta era, exatamente, sedimentar uma base cultural genuína, que partisse das raízes da arte popular. Concebeu, então, fundir a cultura regional nordestina à cultura erudita universal dos anti-heróis e cavaleiros medievais.
Nesse viés, a seiva do arcaico, que remonta à tradição medieval de origem europeia, permeia a literatura popular nordestina e a ela se plasma e se funde. Esse fenômeno possibilita a contínua presentificação do ideário arcaico na arte atual, imprimindo-lhe matizes de cá e de alhures. Por conseguinte, a obra se revela não una, senão plural, num leque de facetas que lhe asseguram a sua universalidade e, permitindo, a sua eternização. Pois, nesse processo de aliar os valores rústicos de tintas locais aos do medievo do além-mar, transcende as muralhas limítrofes do regional e se desdobra na amplidão. É nesse viés que a natureza arcaica se imbrica à erudita e passa a representar, simbolicamente, um cenário multifacetado, a ensejar o levantamento das questões humanas universais.
Essa face singular e plural também se evidencia amplamente nas obras que tomam como base de inspiração temática o personagem Alonso Quijano, o mundialmente aclamado cavaleiro da triste figura, que, na narrativa de seu criador Miguel de Cervantes, se autodenominava Don Quijote de la Mancha. Objetivando pintá-lo com texturas, sons e cores locais, bem como facilitar a pronúncia do nome, além de motivar a identificação do receptor com o personagem, os autores de cordel promoveram um fenômeno de aculturação deste, que, conforme se mencionou acima, resultou no nordestinizado Dom Quixote.
Para citar alguns exemplos, tome-se a obra intitulada Dom Quixote – adaptado da obra de Miguel de Cervantes, livro publicado em 2005, de autoria J. Borges. Esse imaginativo xilogravurista e cordelista, considerado um dos Patrimônios Vivos de Pernambuco, e cujo nome completo é José Francisco Borges, nasceu em Bezerros, em 1935. Contando com as ilustrações criadas pelo artista popular conterrâneo do autor, Jô Oliveira, o texto, conforme evidencia o próprio título, a história se desenvolve como uma adaptação textual. Transmuta a obra-prima espanhola em prosa, ao formato versejado do cordel, com grande competência e facilitação pedagógica. Por essa via, consegue verter a complexidade da prosa original em versos de linguagem simples. Ademais, e não menos importante, faz emergir na narrativa toda a atmosfera do cordel nordestino, rendendo-se à estética do cangaço.
Assim sendo, a obra de J. Borges, mais que parafrasear a escritura cervantina, ajusta-se aos conceitos culturais da região. O relato abre as portas à nordestinização dos fatos e da natureza, bem como à caracterização e atuação dos personagens segundo as tradições locais, com ênfase, é claro, ao importado visionário Dom Quixote. Jogado no meio do agreste, o cavaleiro andarilho depara-se, destarte, com figuras tipicamente nordestinas, tais como matutos campesinos, cangaceiros e monges franciscanos. Procura, desesperadamente, a sua amada Dulcinéia, com o detalhe de que, nesta narrativa tupiniquim, ela habita, curiosamente, uma favela situada nas adjacências de Campina Grande, cidade localizada, por sua vez, no interior da Paraíba.
Enfim, o Dom Quixote – adaptado da obra de Miguel de Cervantes assinala uma modificação que parece despretensiosa, mas que cumpre os objetivos a que se propõe. É um cordel bem urdido, dentro da singeleza que o gênero pede. Acima de tudo, essa engenhosa versão torna leve e inteligível à compreensão do leitor comum, uma temática que, originalmente, implica uma leitura mais densa e de difícil assimilação. Através de uma via mais acessível, o cordelista permite ao brasileiro ilustrar-se, indiretamente, em um grande clássico espanhol e mundial. Por tudo isso, esse Dom Quixote nordestino superou, quem sabe, as expectativas de seu próprio autor: conseguiu integrar o seleto grupo dos livros recomendados pelo MEC, para a sua utilização nas escolas públicas.
Seguem-se algumas estrofes:
No dia seguinte partiu
Para onde Dulcinéia estava
Levado pelo amor
Os obstáculos enfrentava
E a qualquer hora do dia
Em Dulcinéia pensava
Uma noite ele deitado
Pensando em seu destino
Pensou em seus descendentes
Aprimorou o seu tino
E descobriu que ele era
Brasileiro e Nordestino
Da Espanha veio ao Brasil
Junto com seu escudeiro
E avistaram dois homens
Pensaram ser feiticeiros
Mais logo reconheceram
Que eram dois cangaceiros.
Borges, 2005:15-16
Importante e expressiva é, também, a adaptação da obra-prima de Miguel de Cervantes, realizada pelo diretor de cinema, poeta, dramaturgo, professor, ator e roteirista Ruy Guerra. Nascido 1931, o moçambicano Ruy Alexandre Guerra Coelho veio morar no Brasil desde 1958, tendo sido um dos pioneiros do Cinema Novo dos anos 60. Foi casado com mulheres brasileiras arrebatadoras: Nara Leão, expoente da Bossa Nova, Leila Diniz, a musa da liberação feminina e a atriz Cláudia Ohana.
Transposta ao formato próprio da dramaturgia – um gênero considerado por alguns mais nobre e sofisticado – o trabalho de Ruy Guerra, ao contrário, prima por uma singeleza colorida e cativante, sem perder a densidade ínsita ao tema tratado. O resultado é uma bela peça que recebeu o inspirado e significativo título de Dom Quixote de Lugar Nenhum. E que riqueza semântica transmite esse “lugar nenhum”! Interessante metáfora contida na frase, onde “nenhum” pode, paradoxalmente, remeter à ideia de “tudo”.
A encenação da peça contou com a direção de Ernesto Piccolo. A sua estreia se realizou no Teatro Villa-Lobos, no Rio de Janeiro, em onze de janeiro de 2008. Diga-se de passagem, foi estrelada por Edson Celulari, obviamente no papel do Don Quijote. Na trama, o protagonista é trasladado da província de La Mancha espanhola para o sertão nordestino. O nome hispânico do personagem é, curiosamente, alterado para Queixada, enquanto o do cavalo Rocinante é modificado para Rocin (alusão à costumeira pronúncia do nordestino com relação aos diminutivos, onde a terminação “inho” se contrai para “in”).
No cenário abrasileirado, a ação se centra na utópica aspiração do cavaleiro de levar a termo a sua missão que envolve várias etapas. Entre eles, matar o dragão. Eis que a personificação dos moinhos de ventos de Cervantes, por meio da transmutação dos objetos inanimados em uma única e atemorizante fera de carne e osso, torna mais compreensível a intenção do protagonista. Este, igualmente, deseja encontrar sua adorada Dulcinéia. Como não poderia deixar de ser, no geral, o herói importado da Espanha deseja lutar para transformar o seu sonho de justiça e de amor em realidade.
No que tange à obra O Duelo de Lampião e Dom Quixote (2009), de autoria do jornalista e escritor de Massapê, Ceará, chamado Francisco Cunha (Francisco das Chagas Cunha Filho), a proposta é original e instigante. Como acontece frequentemente na literatura nordestina, o tema aglutina a dimensão do real e do imaginário. Até aí seguiria dentro da “normalidade” temática da região, não fosse que esses planos transitam, literalmente, em duas direções opostas: o ficcional vira real e, inversamente, o real se apresenta como ficção. No texto, o verdadeiro Virgulino Ferreira da Silva – o Lampião – que de fato existiu na vida real, é ficcionalizado, transformado em fantasia.
Em outras palavras, o rei do cangaço comparece na obra como um personagem inventado, que nunca nasceu nem viveu de verdade. Opostamente, através da volição literária do escritor Francisco Cunha, o dom Quixote ficcional, que remonta a Don Quijote, cujo berço é o imaginário cervantino, passa a ser descrito e tratado no citado texto, como se fosse um ser vivente, de carne e osso, a transitar, não no plano abstrato da ficção, mas numa dimensão que se quer concreta, uma pseudo-realidade.
Assim sendo, colocam-se, frente a frente, ambos: Lampião, o autêntico cabra da peste brasileiro do século XIX - transformado em ser ficcional; e Dom Quixote, personagem nascido da fantasia cervantina no século XVII, tornado um homem real. Ao se confrontarem os dois, bem como as suas respectivas queridas, as indefectíveis Maria Bonita e Dulcineia, o autor imbrica os universos palpáveis aos impalpáveis, concebendo uma tragédia histriônica, que tem o dom de capturar o interesse daquele que a lê. Diante dos olhos do receptor, brota uma narrativa simultaneamente real e irreal, temporal, atemporal e profundamente absurda. A esses aspectos, atrelam-se outros inerentes ao imaginário e à concepção dos cordéis que impregnam, na verdade, toda a obra, da qual recende uma vasta e peculiar nordestinidade.
Neste tópico, há que se regressar ao notável paraibano Ariano Suassuna, para se mencionar – e reverenciar O Romance da Pedra do Reino. Configura-se como um dos mais representativos textos literários de cunho erudito e popular, a emanar a questão da nordestinização de um tema ibérico. Obra-prima do citado escritor, desponta, incontestavelmente, como uma das criações literárias mais extraordinários da literatura universal.
É de conhecimento, tanto no Brasil, como no exterior, que os seus personagens, mais que profusos, são instigantes, na sua alegoria tragicômica. Sem tematizar literalmente o Don Quijote cervantino, a obra, contudo, surge como um romance à moda de um Dom Quixote abrasileirado. Permeado de humor e loucura, é alimentado pela cultura popular do Nordeste, na lúcida avaliação do jornalista francês Mathieu Lindon. Ainda segundo ele, no artigo “Ariano Suassuna, a voz do Nordeste”, da revista virtual Libération:
“a influência de Don Quijote, bem como do romance policial, são marcantes na Pedra do Reino, onde a fantasia abarca a dimensão do mundo (...)”.
Trata-se, pois, de uma obra surpreendente, que coloca em cena, na tessitura de uma narrativa fantástica de fulcro quixotesco, a cálida epopeia nordestina. Sobre essa matéria, há que se depreender a simbologia contida nessa menção ao caráter epopeico. Ora, este evidencia a grandiosidade cultural intrínseca ao texto. Assinala que se trata de uma história que extrapola um simples relato, para instituir uma narrativa maior, a assumir uma face mítica. Ressalta as façanhas de um herói que representa toda uma gente; ou, em última instância, conta a história da própria origem e linhagem de um povo: o povo nordestino.
Na esteira de tantos estudiosos locais e estrangeiros, o ensaísta parisiense Gerard de Cortanze também pontifica que a Pedra do Reino se abebera na literatura de cordel. Acrescenta que, ao apresentar um universo cavaleiresco e aliar o erudito ao popular, em histórias de luta e penúria, vertem, não obstante, uma grande dose de humor e picardia. Em virtude de tais aspectos, Cortanze conclui que, seguramente, o romance teria entusiasmado Cervantes. Não custa sublinhar que, ao conceber essa cena onde o escritor ibérico porventura lê a obra de Ariano, dá-se um fenômeno curioso. Nesse instante, o crítico viaja ao imaginário e se faz inventor.
O tempo em Pedra do Reino se situa no século XIX e a ação se desenvolve no povoado sertanejo de São José do Belmonte, que dista 470 quilômetros do Recife. Quaderna é um narrador que testemunha os causos contados nesse sertão encantado. Na história, tenta-se ressuscitar o lendário rei português Dom Sebastião, desaparecido na Batalha de Alcácer-Quibir, na África. Sobre isso, é importante grifar que, até os dias de hoje, na vida real do estado de Pernambuco, esse sebastianismo popular se manifesta reiteradamente, sempre por ocasião da Cavalgada da Pedra do Reino.
Pese à repercussão, Brasil afora, dessa obra verdadeiramente antológica, não há como alguém furtar-se a mencionar, do autor acima referido, o não menos extraordinário O Auto da Compadecida, de 1955. Observe-se que, a expressão “auto”, do título, reporta-se a uma composição dramática da Idade Média, assinalando, mais uma vez, (e literalmente) a incorporação do medieval na obra de Ariano. O citado livro foi, de imediato, uma unanimidade nacional, um sucesso incontestável e avassalador. Consequentemente, mereceu, desde logo, receber adaptações para o cinema e a televisão, sob a direção de Guel Arraes, cineasta e diretor televisivo recifense, nascido em 1953, filho do ex-governador de de Pernambuco, Miguel Arraes.
A intriga ou enredo se centra no enfoque das hilárias aventuras de dois homens humildes que lutam pela sua sobrevivência num ambiente pobre e hostil. São eles os nordestinos João Grilo e Chicó. Aquele, com uma inteligência norteada pela astúcia de suas palavras e esperteza nos seus atos, ludibria facilmente os poderosos e religiosos cooptados pelo poder. De tal modo, após ter sido assassinado, vítima de um cangaceiro, ele consegue, sempre pelo viés de suas artimanhas, a sua salvação. Para tal, obtém a intercessão da Virgem Maria, a Nossa Senhora e Mãe de Jesus, da doutrina católica. Só que, nesta concepção trazida à tona por Ariano Suassuna, a santa ostenta uma aura sincrética: a Compadecida é fruto da fusão do real com o imaginário, catalisada pelo amálgama cultural. Esta intensa personagem, na versão cinematográfica, é interpretada pela atriz Fernanda Montenegro.
É relevante verificar que, assim como “A Compadecida”, uma gama de textos e cordéis nordestinos seguem os preceitos do Movimento Armorial. Entrelaçam a magia da cultura popular, com as peculiaridades da cultura medieval e do começo do Renascimento na Europa, tudo isso trespassado pelo aspecto do culto. Exemplo bem urdido é a importação e adaptação do arcaico, na figura de “Dom Quixote”, que transita, literal ou simbolicamente, em tantos relatos. Desta maneira, as histórias e seus personagens conservam, eternamente, um pé no Nordeste e outro em La Mancha. É que, pela sua feição entretecida e por sua natureza amalgamada, não são nem de aqui, nem de lá, nem de alhures. Não têm um pertencimento único: pertencem a todo e qualquer lugar. Através das reflexões acima elencadas, espera-se, portanto, haver contribuído com o tema da nordestinização do Don Quijote de la Mancha, acendendo um farol a explicar o carisma e o êxito que angariam tantas obras que germinam nessa região. Na medida em que transcendem o semblante de especificidade nordestina e/ou nordestinizada, elas se agigantam. Passam a integrar uma escritura de abrangência muito mais densa e vasta, em criações inspiradas, ubíquas e multifacetadas, a estampar um fulgor personalíssimo e universal na literatura brasileira.