No início era o engenho. O engenho e a estrutura social que o sustentava. A casa-grande e os resquícios da senzala. O ...

Zé Lins e João Cabral: o engenho e o depois

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No início era o engenho. O engenho e a estrutura social que o sustentava. A casa-grande e os resquícios da senzala. O senhor e os cassacos quase escravos. O canavial. A cana-de-açúcar. O açúcar. O mel. A rapadura. A farinha de mandioca. A tapioca. A pequena roça de subsistência. Um mundo à parte do mundo. Um feudo. Um específico universo material e imaterial. Um microcosmo. Uma sociologia. Uma antropologia. E nessa mesma origem, dois meninos, meninos de engenho, não moleques da bagaceira, mas sinhôzinhos da casa-grande: José Lins do Rego e João Cabral de Melo Neto. O primeiro, paraibano nascido em 1901, em Pilar; o segundo, pernambucano vindo ao mundo em 1920, no Recife, mas ambos com a infância passada nos engenhos das respectivas famílias.

Uma geração separa Zé Lins de João Cabral. 19 anos. Tempo suficiente para explicar certas diferenças pessoais e literárias entre o futuro romancista e o futuro poeta. Ou não. Pois as diferenças podem ter outras causas, para além da cronologia. Geralmente, sim, o homem é fruto de sua época e do seu meio. Mas nem sempre. Machado de Assis é um exemplo de quem fugiu à fatalidade desse determinismo.

Provavelmente, ambos os meninos, cada qual a seu modo, intuiu a situação social assimétrica que caracterizava a sociedade patriarcal dos engenhos nordestinos nas primeiras décadas do século passado. Viram-se como privilegiados diante dos cassacos e de seus filhos numerosos. Estes, criados ao deus-dará, livres como os animais fora do curral; eles, protegidos como pequenos senhores, dentro e fora da casa-grande, reverenciados servilmente por aqueles, como futuros patrões. Terão eles, enquanto crianças, percebido e sentido a intrínseca injustiça daquela ordem social que beneficiava uns em detrimento de outros? Ou, ainda enquanto crianças, terão achado normal, como se fosse a ordem natural do mundo e de Deus, aquela desigualdade de condições e de destino? Tudo é possível. As crianças costumam ser mais inteligentes do que pensam os adultos.

O temperamento diferenciava os dois meninos. E o temperamento é tudo. Ou quase. Na medida em que determina ou influencia fortemente a personalidade, a maneira de estar e de se colocar no mundo, enfrentando-o ou a ele se submetendo docilmente, alimentando a rebeldia ou a conformação. Na introdução às suas memórias de infância, Meus verdes anos, Zé Lins afirma textualmente: “O meu temperamento não era de um contemplativo.”. Era menino da casa-grande, mas sentia-se um moleque igual aos filhos dos servos de seu avô. Não queria estudar nem ler nem rezar. Queria correr pelo campo, desembestado, sem hora para nada, tomar banho de rio, descobrir o sexo com os bichos, ele mesmo um pequeno animal quase selvagem, de difícil domesticação. Era sinhôzinho e ao mesmo tempo não era, pois misturava-se; mais que isso: irmanava-se. Mas, a despeito disso, não podia apagar na igualitária confraternização infantil o fato incontornável de que era neto do seu avô, o poderoso senhor-de-engenho, de vários engenhos, patriarca absoluto de terras, pessoas, plantações e animais.

Já o menino João Cabral de Melo, que levava o mesmo nome e sobrenome do avô, daí o Neto, ao que parece, era mais da contemplação que da ação. Segundo os biógrafos, “para desgosto da família, passava seu tempo lendo literatura de cordel para os cassacos do engenho”. Então, na medida em que se aproximava dos subalternos nessas reuniões literárias, deve ter percebido a tácita hierarquia estabelecida entre o sinhôzinho leitor e os analfabetos trabalhadores ouvintes. Para a ensaísta Cecília Prada, em seu livro Profissionais da solidão, Editora Senac São Paulo, 2013, “João Cabral sempre guardou dentro de si aquele espanto primeiro do menino de engenho que foi – a descoberta brutal da divisão social, dos dois mundo que coexistiam, separados, marcados pela injustiça e pela opressão, no seu cotidiano, e que transporia mais tarde literariamente: o mundo do senhor de engenho e o mundo do cassaco (trabalhador), o ritmo deputado, o ritmo senador, de um lado, de outro a condição cassaco, o espaço Severino.”.

É possível, sim, que o menino João tenha registrado em sua sensibilidade ainda em formação a divisão de que fala a ensaísta. Mas é claro que só a sua consciência de adulto, acrescida dos valores marxistas que teria absorvido, permitiu-lhe expor literariamente em seus poemas as questões sociais presentes no ambiente latifundiário e patriarcal em que nasceu e cresceu, questões estas que, a despeito de atenuadas, sobrevivem na economia canavieira nordestina e brasileira. Com a maturidade existencial, intelectual e política, o poeta lançou seu olhar crítico ao seu mundo da infância, analisando-o retroativamente – e condenando-o, através da exposição poética das injustiças que lhe eram – e são – inerentes. Afirmar que o futuro poeta marxista já existia no menino de engenho talvez seja demais. Marxismo (e outros ismos) é doença que se pega no mundo, não se nasce com ela.

Já com Zé Lins as coisas correram de modo diverso. O menino pode ter percebido a assimetria social existente nos engenhos avoengos e pode até ter se impressionado com isso. Mas no seu caso não houve a ideologia marxista quando, na maturidade, reconstitui ficcionalmente o seu mundo agrário de menino sinhôzinho, nas obras do chamado “ciclo da cana-de-açúcar”. Nos seus romances, a crítica aos vícios da economia canavieira nordestina de começos do século XX é mais tácita que explícita, fica mais por conta do leitor que do autor. Este, limita-se simplesmente a narrar o que foi e não a pregar o que deveria ser. Nos poemas de João Cabral há descrição do ambiente social, mas percebe-se com maior clareza o tom de denúncia. Em Zé Lins, há sobretudo reconstrução memorialista do meio físico e social de sua infância, e se há denúncia, é num tom muito sutil, que nem sempre dá para percebê-la como tal. Não quer isto dizer, evidentemente, que o nosso “doidinho” era um reacionário - nem um alienado. O marxismo não é – e nunca foi - a única lente com a qual se pode ler o mundo. Só os cegos pensam que sim. Os óculos de José Lins foram outros – e, pode-se afirmar, bastante eficazes para o que pretendeu realizar.

Como se vê, mesma origem, mas separados imensamente os dois escritores. João Cabral, com todos os seus méritos de grande poeta, somados à sua crítica social, tornou-se um ícone da esquerda brasileira e mundial, chegando até a ser merecidamente cotado para o Nobel de literatura. Zé Lins, com todas as suas inegáveis qualidades de narrador, mais expositor que crítico, pagou o preço de seu não engajamento à imprensa e às academias engajadas. O mesmo preço que pagou – e ainda paga – seu genial mentor intelectual, Gilberto Freyre, primo do poeta João. Mas isto já é outra história.

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