Ando com saudade da época em que eu saía hoje para chegar ontem, assim mesmo, como numa viagem ao passado. E que ninguém se assuste. Não endoidei, ao que suponho, pelo menos.
Aviso que não estou a tratar, aqui, de fuso horário, coisa que pode permitir dois réveillons a passageiros de avião que saia de Tóquio em 1º de janeiro para aterrizar em Los Angeles no dia anterior, 31 de dezembro.
Neste caso, a coisa se explica pela instituição do marco temporal fixado ao cabo do acordo internacional do Século 19 que fez passar por Londres, no sentido Norte/Sul, a linha imaginária destinada a fatiar o planeta em duas bandas. É o tal meridiano zero grau, de Greenwich. O oposto, de 180 graus, estabelece a Linha Internacional da Data ao longo de quase toda a extensão do Oceano Pacífico, para o avanço ou atraso dos relógios em até 12 horas, a depender do lado e da distância em que dali se esteja. Ninguém tome a questão pela ótica política, mas a banda esquerda, a oriental, desde então está mais avançada.
Lembram de “A volta ao mundo em 80 dias”, o livro de Júlio Verne adaptado para o cinema com este mesmo título e com elenco de ouro? Pois é, Phileas Fog, o britânico que apostou em que cruzaria o mundo no citado período, só ganhou a aposta milionária pela obtenção de um dia a mais ao transpor a Linha da Data.
Você mesmo já se acostumou a ver pela televisão, a cada ano novo, o estouro de fogos de artifícios, em partes diferentes do mundo, antes da queima daqueles acesos pela Prefeitura da sua cidade com a ajuda dos impostos nossos de cada dia.
Mas é bom esclarecer que os fusos horários não dependem apenas das faixas longitudinais ao redor da Terra. Há fronteiras históricas e políticas, também aí, ditando ordens e regras. Todos decerto sabemos que o Brasil, país de dimensão continental, tem quatro fusos horários, se incluído o padrão adotado em Fernando de Noronha. E que nem sempre foi assim. Houve o caso do fuso do Acre e parte do Amazonas decidido por plebiscito depois de alterado por lei federal.
Mas, repito, não estou a tratar disso. Falo é de pegar no Recife o trem vagaroso da Rede Ferroviária do Nordeste, na sexta-feira, às 18h30, para dele descer na Paraíba, no começo das férias escolares e rumo à casa paterna, às 23 horas do dia anterior, a quinta-feira. Falo, mesmo, é de sair hoje para chegar ontem.
Impossível? Você não diria isso se dividido estivesse entre a fé católica e o que ensinam um judeu e um adventista do Sétimo Dia (referência ao sábado, do descanso divino), apenas para ficarmos nesses dois exemplos. Os adeptos do judaísmo, ao que leio, percebem-se no ano de 5785, neste outubro. Os adventistas admitem o calendário que eu e você temos na parede, mas, como os judeus, entendem que um dia muda para o outro ao pôr do sol, não à meia-noite. Isso mesmo, creem em que Deus conta os dias da semana de poente a poente até o sétimo, o do descanso. Na casa da Tia Mariinha, que me abrigava no Recife para os estudos primários, esta era uma crença advinda da leitura do “Gênesis”, o primeiro livro bíblico.
Com alguns cortes, em benefício, aqui, do espaço e da sua paciência, o livro atribuído a Moisés diz assim: “Deus chamou à luz dia, e às trevas chamou noite. Passaram-se a tarde e a manhã; esse foi o primeiro dia”. As criações do firmamento, terras, águas, frutos e seres viventes (o homem e a mulher por último) transcorrem neste livro com etapas diárias contadas a cada passagem das manhãs e tardes.
Então, fica fácil entender por que eu deixava a casa da tia adventista no começo de uma sexta-feira para desembarcar na casa de pais católicos antes de a quinta-feira se findar. De uma crença a outra, fiz várias dessas viagens com tempo regressivo. Política e religião, de fato, podem tudo.
Não me ouça a tia querida, já arrebatada por Deus, como cremos eu e os parentes evangélicos, neste caso, sem contradições. Mas eu não gostava de tomar banho, calçar sapatos, botar roupa de passeio a fim de ficar em casa para receber o sábado quando o sol declinava às sextas-feiras. Tínhamos, na ocasião, o cântico de hinos, a leitura de um texto da Bíblia e uma oração final. E, amanhecido o dia, um sábado de culto na Igreja e refeições frugais. Pratos e poeira se acumulavam na pia, no chão e nos móveis até o entardecer, quando nos surgia o domingo. A partir daí, haja vassoura, espanador, sabão e esponjas a limpar tudo.
Eu gostava era dos ritos católicos pouco impostos, fossem pelos meus pais, fossem à beira do púlpito do Padre Gomes. Confesso que, ali, próximo dos 14 anos, os olhos e o riso de uma moreninha me atraiam mais do que os sermões dominicais. Que o bom padre também não me escute.
Acredito em que ele e a tia saudosa dão-se bem, hoje em dia, no Paraíso. Afinal, Deus nunca abandonaria os que professam a bondade e a retidão, embora por meios e modos diferentes. Não é mesmo?
O que agora observo da minha varanda, certamente, é o que me traz a lembrança de coisas tão passadas: um colégio adventista prestes à inauguração quase na minha esquina com cinco lajes e capacidade para 1.500 alunos, 750 por turno. Afinal, tive parte do meu curso primário num deles.