Valtinho estava já em sua décima primavera e frequentando a quarta série, o que era absolutamente normal para sua idade. Na escola, ...

Valtinho cabeção e a ortografia

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Valtinho estava já em sua décima primavera e frequentando a quarta série, o que era absolutamente normal para sua idade. Na escola, apreciava as aulas de história, mas ficava muito revoltado quando a professora dizia que enforcaram um tal de Tiradentes, só porque esse sujeito queria nos separar de Portugal. No entanto, ficou muito empolgado quando Dona Matilde contou que anos depois teve alguém que deu um grito e de espada em punho mandou os portugueses para aquele lugar. “Quero ver se eles têm coragem de enforcar Dom Pedro”, pensou Valtinho lá com seus botões.

Conhecia de cor, ali na ponta da língua, as capitais de todos os nossos estados e mais de um montão de países. Sabia de trás para frente e de frente para trás todos afluentes do Amazonas, os da margem direita e os da esquerda.

E na aritmética, então? Resolvia com facilidade problemas que envolviam duas ou mais operações, Um danado para fazer contas. Multiplicava, subtraía, somava e dividia, assim de cabeça, sem precisar pegar no lápis. Inteligente que só e foi por essa habilidade nos cálculos que ganhou o apelido de Cabeção.

O problema era com a Língua Portuguesa, Com Valtinho nossa “Última flor do Lacio” padecia tanto que parecia estar ferida de morte. O bichinho maltratava nosso idioma. Era quando, lá dentro da cabeça desse nosso rapazinho, as terminações de um neurônio não se conectavam com a membrana de outro. Esses momentos em que ele estava agarrado com a gramática eram para ele instantes de aperreio, e dos maiores.

Recomendaram um psicólogo. Não funcionou. Depois, outro, mais outro e os diagnósticos eram os mesmos: Não há nada de errado com esse menino.

Nas aulas era sempre atento. Défice de atenção? De jeito nenhum.

Mas...

— Professora, eu não truce o livro. — Não é “truce”, é “não trouxe” – corrigia Dona Matilde.

Muito paciente (Dona Matilde gostava muito de Valtinho), tentava o “o método” da repetição.

— Valtinho você vai escrever 20 vezes a palavra trouxe. Pode começar.

E lá foi Valtinho escrevendo: trouxe, trouxe, trouxe...vinte vezes.

— Muito bem Valtinho, onde está o livro que eu pedi para trazer de casa.
— Eu não trouxe, professora.

Ninguém podia negar que o garoto era esforçado também obediente e respeitoso, enquanto Dona Matilde era abnegada e o corretivo estava se mostrando eficaz. Até que um dia…

...Todos deveriam trazer de casa um rolo de papel higiênico e um tubo de cola branca. Gesso a professora se encarregara de trazer. Iriam aprender a fazer máscaras usando papel machê. Só que Valtinho já foi avisando a professora.

— Eu não trouxe a cola, só trouxe o papel higiênico, professora. Que beleza, ele disse trouxe e não truce, está aprendendo, é só fazer esse garoto escrever muitas vezes corretamente a palavra – conjecturou Dona Matilde.

— Mas por que não trouxe a cola, Valtinho? Esqueceu?
— Não professora, é que não cabeu na mochila.
— Como é que é, Valtinho? Não é não cabeu, o certo é não coube. Para aprender, tome aqui essa folha de papel almaço e escreva 100 vezes a palavra coube.

Lembram-se do que se trata essa folha de papel almaço? Quatro páginas pautadas, tamanho A5, muito usada em tempos idos para fazer provas e trabalhos escolares.

E lá foi Valtinho escrevendo: coube, coube, coube, coube…

Tarefa concluída, chegou a professora observando que o menino completara as quatro páginas com todos os “coube” que nela cabiam.

— Escreveu 100 vezes, Valtinho?
— Só 97, professora?
— Por que não 100 vezes, Valtinho.
— Porque não cabeu mais nada nas folhas, professora.

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  1. O cronista em sua melhor forma. Parabéns, Paiva. Francisco Gil Messias.

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  2. Anedota divertida. Não adiantou nada a professora dizer que é coube e não cabeu ´e que é trouxe e não truce....

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  3. Quem diria... O Prof Paiva se tornou um cronista, e dos bons! Tenho boas lembranças suas dos meus tempos de aluno do Objetivo de S. J. Campos, entre 1982 e 1984. Encontrei um texto seu ("Quem é vivo sempre desaparece") e voltei no tempo, com a lista dos mestres que tive. Até deixei um comentário por lá, pois devo grande parte do que sou àquele fantástico grupo de docentes, do qual você fez parte. Abraços, Prof.

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