A língua francesa define tour de force como uma ação que exige uma força além da necessária, seja no sentido físico, seja no sentid...

Tour de force

A língua francesa define tour de force como uma ação que exige uma força além da necessária, seja no sentido físico, seja no sentido moral. Linguisticamente falando, fazer um tour de force é, portanto, se jogar num exercício de contorcionismo linguístico, para explicar alguma coisa ou expor um argumento difícil de se sustentar. É o que temos visto, com frequência, na política que se pratica, especialmente, no Brasil.

No Livro I da República, Sócrates mostra a Polemarco e a Trasímaco que o conceito que eles defendem como sendo o de Justiça está mais para a retórica do que para a dialética. O personagem socrático, distingue, de maneira sutil, ao utilizar a maiêutica, uma coisa da outra. A retórica exige a presença de um juiz que possa julgar qual o discurso mais convincente, ainda que não seja justo ou verdadeiro, vez que o seu objetivo é vencer o seu contendor. Já a dialética busca a harmonização e o equilíbrio de um conceito, tendo como base a solidez da argumentação. No exercício da dialética, não há vencedores, senão a argumentação lógica, que não dá espaço para o sofisma. Se há perdedor, quem perde é o sofista, que se desgasta ao querer competir com uma verdade que se estabelece pela razão.

A Justiça, objeto do diálogo platônico referido, afirma Sócrates, nesse capítulo introdutório, quando se dão os primeiros embates entre a dialética e a sofística, não pode ser dissociada da virtude (ἀρετή) e da sabedoria (σοφία), ao contrário do que pensam Polemarco e Trasímaco. Já a injustiça, esta se encontra associada ao vício (κακός) e à ignorância (ἀματής), porque afinal de contas, comete-se a injustiça (ἀδικία) ou faz-se o mal, por ignorância do que sejam a virtude e o bem (ἀγαθός).

É ainda nesse primeiro livro da República que aparece uma afirmação de Sócrates, utilizada à exaustão, mas sempre descontextualizada e confusa, por se pretender que o sentido de política para Platão seja o mesmo que existe, hoje, sobretudo no Brasil, em que as ações escusas tomam o lugar da responsabilidade e do cuidado com a coisa pública. Platão afirma que pelo fato de o cidadão de bem (ἀνήρ ἀγαθός) não querer governar, ele se condena a ser governado pelos maus, por alguém pior do que ele.

Normalmente, confunde-se isso, por ignorância ou deliberadamente, com a escolha de políticos pelo voto e com política, tomada aqui no seu sentido restrito e estreito de política partidária. Pelo que conheço da República – adianto que não sou filósofo, nem especialista no texto platônico, mas tenho uma certa convivência com ele –, o cidadão de bem que se recusa a governar, recusa a sua responsabilidade de buscar a justiça, não porque deixou de votar ou porque escolheu mal. A questão é anterior: ele abriu mão de buscar a justiça e de praticá-la diuturnamente, de maneira incansável, sem dar tréguas à sua busca e à sua prática. Seremos governados por pessoas piores do que nós, quando deixamos de assumir as nossas responsabilidades como cidadãos, nas mínimas coisas, realizando ou não uma ação pública, que vai muito além do voto.

As ações que nos levam à prática da justiça devem ser realizadas, em qualquer situação, não porque a lei manda, mas porque há um bem maior a ser atingido, que antecede a necessidade de qualquer lei escrita pelo homem, para dizer o que devemos ou não fazer. Trata-se do bem comum, dever inalienável do cidadão com a coisa pública. Não é à toa que a alegoria do Anel de Giges (Livro II, 359d-360d) é uma das três colunas de sustentação da República.

Em outras palavras, as ações do cidadão devem ser para o bem comum, mesmo que contrariem os seus desejos pessoais. Se todos pensarem e agirem assim, a médio prazo todos seremos beneficiados, porque a virtude e a sabedoria de nossa prática diária se transformarão na Justiça que buscamos, por um simples detalhe: a justiça está dentro de nós, jamais fora.

Como preferimos a comodidade, conforme diz Sócrates, vivemos esperando que alguém faça por nós e, assim, nos entregamos nas mãos dos maus e viciados, esperando que a justiça se faça fora de nós. É nesse sentido, acredito, que devemos entender a afirmação de Sócrates. E o sentido se torna claro, quando vemos o tour de force que muitos fazem, de maneira a justificar o injustificável. Quando pegos na prática viciada da injustiça, fazem-se de vítima, por não ter como argumentar. Preferem distorcer toda uma razão, para justificar o apoio aos políticos viciados, na esperança de obter um benefício pessoal, sabendo que esse benefício pessoal vai custar caro a muita gente e a si mesmo. É danoso a muitos, pelo fato de que não se trata de uma ação republicana que visa ao bem comum; é danoso a si mesmo, porque, sendo um benefício efêmero e inseguro, obriga o mau cidadão à dependência de discursos falsos e bajuladores, para agradar aos mandatários de plantão. Como um Sísifo provinciano, ele fica preso à rocha da bajulação e da subserviência, que sempre lhe escapa das mãos.

Nessa prática abjeta, vemos como o tour de force, de fraca capacidade argumentativa, funciona. Aquele que ontem era visto e apontado, como o bandido execrável, que deveria ser punido pelos crimes que cometeu, hoje é o amigo, o querido, o melhor e mais capaz, nos argumentos fluidos e falazes dos adeptos do tour de force, em benefício próprio. Não importa que os seus queridos defendidos, continuem a cometer os mesmos crimes e sejam denunciados por sua prática, sempre haverá uma defesa para eles, na nova/velha situação em que o defensor do indefensável se encontra.

Tudo isso me veio à mente, numa caminhada que fiz, no domingo pela manhã, entre a Epitácio Pessoa e a nossa orla. Além do barulho ensurdecedor, num dia que deveria se de paz e descanso; além da sujeira com os famigerados santinhos, o que mais dava engulhos era ver os inimigos de um ontem muito próximo – água e óleo –, juntos, hoje, abraçados e indissociáveis, na mais pútrida e indiferenciada mistura estercorária que jamais presenciei. Falta não apenas o espírito público. Falta brio, falta cerviz. A falha moral ali presenciada é maior e mais ruinosa do que a falha de San Diego.

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  1. Bravíssimo, Milton. Sua indignação é a dos justos. Francisco Gil Messias.

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  2. Obrigado, Gil!

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  3. Excelente, Milton! A sociedade segue sendo representada pela escória que escolhe!


    Válido manifesto!

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  4. Meu abraço,

    Stelo

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  5. Acompanhando esse raciocínio, como se pode votar em um genocida como Bolsonaro ou em quem assumiu o Ministério da Saúde para dar continuidade ao programa genocida de Bolsonaro?

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