Em conversa com alguns amigos, perguntei-lhes qual o contrário de diabo. A resposta veio pronta: Deus . Não é isto mesmo, caríssimo L...

Símbolos

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Em conversa com alguns amigos, perguntei-lhes qual o contrário de diabo. A resposta veio pronta: Deus. Não é isto mesmo, caríssimo Leitor? Parece ser, mas não é. O leitor talvez se espante, como aconteceu com os meus amigos, ao saber que o contrário de diabo é símbolo. Por mais estranho que pareça, posso afirmar que, considerando a origem das palavras, o mais acertado seria ter em mente o par opositor diabo/símbolo. Para que a questão possa ter um esclarecimento satisfatório, vamos, então, buscar ajuda na etimologia.

O adjetivo grego διάβολος significa “o que desune, o que inspira raiva ou inveja”, proveniente do verbo grego διαβάλλω, cujo significado é “jogar entre, brotar entre”, formado pela preposição διά, com o sentido de divisão e separação, e pelo verbo βάλλω, lançar, jogar. Com o cristianismo, difunde-se, com mais ênfase, o termo diabo, através do latim diabŏlus, para designar Lúcifer, o anjo decaído. Atente-se para o fato de que Lucĭfer é palavra latina, anterior ao mundo cristão, significando “o que porta ou que traz a luz”, usada para nomear o planeta Vênus.

Com a palavra símbolo acontece uma formação semelhante. Proveniente do grego σύμβολος, “o que se encontra com”, formado pela preposição συν, com o sentido de reunir, partilhar, estar junto ou estar com, e o mesmo verbo βάλλω, o termo oriundo do verbo συμβάλλω tem o sentido de “reunir, lançar ou jogar junto”. Daí, proveio o substantivo neutro σύμβολον, que se entende como um sinal de reconhecimento. Nos tempos primitivos e, sobretudo, míticos, o sýmbolon, que nos chegou através do latim symbŏlus, designava um objeto qualquer, geralmente partido ao meio, para permitir que, quando reunidas as partes, alguém ou os laços de hospitalidade fossem reconhecidos. Esta prática de reunião de símbolos se enquadra na tipologia aristotélica do “reconhecimento” (ἀναγνώρισις), um dos elementos importantes da tragédia.

Em suma, o diabo é o que se lança para dividir; o símbolo é o que se lança para reunir. Depreende-se daí a evolução (entenda-se aqui o termo, no sentido restrito de abrir-se para fora, como uma ampliação, não como uma melhora, necessariamente) do sentido da palavra diabo, tendo como contraponto a palavra deus.

Vivemos num mundo de símbolos, caro Leitor. Tudo à nossa volta é simbólico. O símbolo mais óbvio, embora não consigamos enxergar, por estar na nossa cara e por fazermos uso diuturno e corriqueiro dele, é o dinheiro. É o que se pode chamar de banalização do símbolo. Há algo mais simbólico do que uma folha de papel pintada, garantindo, supostamente, um valor em ouro, como lastro, no Banco Central de um determinado país?

Falemos, no entanto, de outros símbolos essenciais. Fomos programados geneticamente para falar, mas não para escrever. Tivemos que criar símbolos que correspondessem aos sons emitidos, a que chamamos sílabas ou letras, a depender de uma escrita silábica ou de uma escrita alfabética. Além disso, outros símbolos apareceram, em diversas culturas, como a escrita cuneiforme, hieroglífica ou ideogramática. Por mais diversa que seja a maneira de se exprimir graficamente, tudo é símbolo. Herdamos dos gregos, através dos romanos, as letras do nosso alfabeto. Por sua vez, os gregos abandonaram a escrita silábica, conhecida como Linear A e Linear B, que remonta a séculos antes de Cristo, para se utilizar da escrita alfabética dos fenícios, escrita que também derivou para os povos semíticos. Essa mudança de escrita, entre os gregos, a partir do século VIII a. C., está relacionada a um mito importante de civilização do Egeu – o rapto de Europa por Zeus. A princesa fenícia foi roubada por Zeus, metamorfoseado em touro, que a levou para Creta, dando origem à civilização minoica. O irmão de Europa, Cadmo, despachado pelo pai, Agenor, para procurá-la, acaba indo para o continente, levando consigo o alfabeto, e por lá se fixa, fundando a região da Beócia, cuja capital é Tebas, originando os mitos tebanos. Diante de um alfabeto apenas com consoantes, o grego, para dar suavidade e harmonia à leitura, incorporou as vogais.

No limite, podemos dizer que as letras que usamos no nosso alfabeto provém do fenício, adotadas pelo grego e propagadas pelos romanos. Inclusive o nome que utilizamos para designar o seu conjunto – alfabeto – se origina das duas primeiras letras do alfabeto grego, alfa (α) e beta (β), ou alef (א) e bet (ב), entre os povos semíticos. A diferença é que, para nós, as letras, que são símbolos, perderam, ao menos, duas simbologias preciosas, no decorrer do tempo: o alef representava um boi, enquanto o bet representava uma casa, e assim por diante. Além disso, cada letra expressava um valor numérico, utilizado, por exemplo, na Cabala, para decifração de significados ocultos no livro sagrado dos judeus, a Torá. Para tanto, os judeus utilizam um conjunto de 32 regras hermenêuticas, para a interpretação da Torá, que levam o nome de Gematria, do grego geometria (γηομετρία). Para nós, depois de séculos de andanças e modificações, as letras são apenas letras, nada mais, sem qualquer outra simbologia que não seja a de representar os sons da fala.

Para finalizar, caríssimo Leitor, darei um exemplo, colhido no Dictionnaire encyclopédique du judaïsme (Paris: Robert Lafont, 1996), sobre o simbolismo da segunda letra do alfabeto judaico, o bet (ב), que se encontra no verbete Aggadah, definido como a “parte não jurídica dos textos rabínicos clássicos. A literatura rabínica se divide em dois grandes conjuntos. A Halakhah e a Aggadah, o primeiro compreende todos os debates e decisões de ordem jurídica; o segundo, todo o resto” (tradução nossa).

Ao responder a pergunta sobre o porquê de a Torá começar com um bet, que não é a primeira letra do alfabeto, mas o alef, os rabinos dizem que o livro sagrado começa com a palavra Bereshit, cujo significado é “No princípio”, pelo fato de que sendo o bet simbolizado por um quadrado aberto apenas na frente (ב) – considere-se que o hebraico se lê da direita para a esquerda – existe ali um ensinamento ao homem, a quem não cabe buscar saber o que se passa acima, no céu; embaixo, no mundo inferior, nem o que aconteceu antes do momento da criação. Cabe-lhe exercer a prática inteligente de avançar, seguir em frente, pela única saída possível, que é a abertura frontal da letra.

Esta simbologia de avançar, deixando o passado para trás e refletindo sobre o aproveitamento do presente, para que se possa construir um futuro, encontra guarida na “Ode 11” do Livro I das Odes, do poeta latino Horácio, que ajudou a propagar a expressão carpe diem, muito mal compreendida, por estar comumente associada a um hedonismo, quando, na realidade, trata de uma reflexão moderada, sobre o que devemos fazer, tirando proveito do fruto de cada dia.

Deixo com vocês, Leitores, uma tradução nossa da famosa ode horaciana, símbolo da temperança que leva à sapiência, revelada na simbologia maior da Literatura:

Não procures saber – é ímpio –, que fim os deuses terão concedido para mim ou para ti, Leucônoe; nem examines os números Babilônios. Melhor é suportar o porvir! Se Júpiter nos concedeu muitos invernos, ou se este é o último que o mar Tirreno quebra, agora, nas rochas diante dele; sê sábia, filtra os vinhos e no breve espaço da vida restringe a longa esperança. Enquanto conversamos, foge invejoso o tempo: colhe o hoje, crédula o mínimo possível no amanhã.

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  1. PROFESSOR MILTON.
    Não nos surpreende, sua vastíssima exposição de saberes. Enquanto beneficiários de seus ensinamentos de latim e literatura, sobretudo
    poética, Jaime e eu estamos habituadosa dimensionar sua superlativa competência.

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  2. Obrigado, Dr. Astenio!

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  3. Mais um texto espetacular. Parabéns, e obrigado por mais é mais ensinamentos.

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