É sempre perigoso registrar fatos passados. Há algo de mítico, mesclado com o que fica às escondidas em nossa alma. Na verdade, é a...

Razão da própria vida

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É sempre perigoso registrar fatos passados. Há algo de mítico, mesclado com o que fica às escondidas em nossa alma. Na verdade, é até exótico viver do que foi. Mas, às vezes, não há antídoto contra a saudade.

Enleada em um momento desses que ficou, e, embora talvez em nada interesse a outrem, lembro das palavras de Shakespeare que assevera:

”Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o bem que podemos ganhar, por medo de perder”.

A partir daí, emergi de um mar de hesitações, para, atraída pela doçura da lembrança, tentar pintar com palavras um momento único. Estava em um parque, entre os muitos que hoje já não existem mais no Rio de Janeiro. Era domingo.

Uma criança linda, sorrindo com seus “dentinhos de coelho” – ainda não tinha um ano


E começou a dar os primeiros passos em minha direção. Tão de repente, que fiquei sem voz. Sem ação. Não sabia se corria e o amparava ou o deixava tentar já que estava sobre a grama bem fofa e não havia perigo. Os passinhos continuaram, incertos, inseguros, mas sorridentes.

– Claro! — Peguei-o no colo. Dei-lhe mil beijos. Mas, agora, ele queria de novo e de novo... andar. Sob o manto de Jesus, aquele menino começara os seus primeiros passos debaixo do abrigo da mais bela e frondosa árvore que ali, então, existia. Uma cena fotografada para sempre, pois as fotos daquele momento perderam-se na fogueira do tempo e da separação que veio pouco depois.

Atraído pela doçura da situação, um senhor aproximou-se, sentou ao meu lado e, educadamente, cumprimentou-me e começou uma conversa aparentemente rotineira.

A certa altura, indagou:


Naquele momento, quis responder-lhe de forma ríspida. Quem lhe dava o direito de quebrar o encantamento daquela hora. — Quem era ele? Como sabia tanto de mim?

Porém, quando tentei responder e virei-me, pois não tirava os olhos do meu menino, já não o encontrei.

Nada descobri daquela criatura, que parecia saber o meu destino. Não sei definir o que houve. Apenas asseguro que está no limbo do meu existir.

Hoje, eu sei que tenho um filho bem preparado, educado. Que trabalha desde os dezoito. Tenho um belo neto. Vivemos na mesma cidade. No entanto, só depois de quase dois anos, recebi uma foto do pequenino continuador da família. Está lindo. Mas, já me furtaram alguns dos melhores instantes da vida dele. Apesar disso, eu os imagino em minha mente e oro por eles. Devem estar felizes. Isso me basta. Pouco importa que ele nunca leia o que escrevo e nada saiba sobre o que faço ou como estou.

Enquanto isso, lembro do recado daquele senhor. Assim, teci páginas e páginas de dedicação integral àquele menino, hoje já papai, ao trabalho para dele cuidar e da minha família. São lindas, douradas páginas. Algumas por ele, depois, questionadas. O que importa é que não escrevi nada só meu.

Deixei as minhas páginas em branco. Sempre para depois. Esse foi meu erro (um deles, o outro – principal, o trabalhar demais). Não há volta, porém.

Nunca há.

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