Foi depois de uma briga mais séria com o marido, em Utah, nos Estados Unidos, que a saudade de casa lhe bateu sem piedade no lombo e na alma. Havia esculachado o companheiro com todos os termos e palavrões dos quais lembrava, sem esforço nenhum, em bom e claro português. Mas, no ápice da raiva, entendeu que ele se pusera derrotado não por isso, pois não dominava o idioma, mas pelo conhecimento das histórias de Lampião que não cansava de ouvir, encantadíssimo, em tempos de paz, na hora da cama. Estava certa de que seu homem jamais brigaria,
além do limite da reconciliação, com a Maria Bonita que às vezes incorporava, quando preciso. Até porque ele também sabia dos estragos de uma água fervente no ouvido, caso pegasse no sono.
É claro que as coisas nunca chegariam a tais extremos. No frigir dos ovos (êpa!), aqueles dois se amavam. Logo mais, como sempre acontecia, estariam aos beijos e com pedidos mútuos de perdão, desta vez, em inglês fluente, ao que me foi contado.
Numa das raras visitas ao Brasil, o marido ouvira do sogro, de quem sou amigo: “Essa daí puxou à mãe. Tem um gênio danado”. Às gargalhadas, a cunhada mais nova encarregou-se da tradução. Também ouvi deste meu amigo a insatisfação sua e de sua cara-metade com a impossibilidade de conversar sem intérpretes com os netos, um menino de 14 anos e uma mocinha recém-ingressa na universidade. Percebi, de imediato, o quanto desejava que os netos americanos tivessem a fala e o sotaque nordestino da filha mais velha.
Foi ele quem me contou das arengas costumeiras dela com o genro decorrentes, muitas vezes, de choques culturais. “Como alguém pode vestir pijama a fim de dormir sem tomar banho?”, reclamava a moça, mesmo quando na casa paterna. O marido, nascido em terra gelada, acostumado a comer pizza com uso das mãos e a não ter que lavá-las a todo instante, não suportava aquela obsessão da mulher pela limpeza. Repelia a ordem de, ao menos, duas escovações dentais e, sobretudo, com todas as suas forças, aquelas exigências dos dois banhos diários.
Mas voltemos a Utah. Reconto isso, evidentemente, com as licenciosidades da crônica. Lá fora, um frio desgraçado, abaixo de zero. Dentro de casa, em volta da lareira, o ambiente só não era mais suave e acolhedor em razão do estado de espírito da dona da casa. Ainda lhe sobravam uns restinhos de raiva. E, como já dito, um montão de saudades.
O marido sisudo, suas duas crias e a cunhada levada para os estudos na cidade (e para o relato frequente aos pais do que por ali se passava, penso eu), já sabiam o que então viria da nossa Maria Bonita, nessas ocasiões. E até gostavam da repetição das suas histórias de sol e seca, inverno e fartura, vaqueiros, chapéus de couro, gibões e aboios.
“Vocês não sabem o que é acordar bem cedo com o canto do galo, o mugido dos bois, a revoada dos passarinhos, o café de pilão, o cuscuz com leite, as tapiocas. Ah, meu Deus, como me fazem falta um queijo de coalho, uma pamonha e uma fatia de canjica”, suspirava Maria.
Esquecia ela de que todos ali já sabiam daqueles sons, cheiros e sabores. A irmã, desde o nascimento e, os filhos americanos, em razão de viagens mais frequentes à fazenda dos avós. Tanto quanto sabiam dos petiscos, das cores, das festas e das águas mornas de Tambaú, bairro praieiro, onde a família materna também possui morada.
Mas se ajeitaram no sofá a fim de tornar a ouvir o que se seguiria. E lá vieram as explicações sobre a influência moura no aboio sertanejo, o canto de trabalho destinado ao sossego e à condução dos rebanhos.
Ainda mais saudosa das suas origens, a mãe recontava aos rebentos que a voz encantada dos vaqueiros chegou aos ermos do Nordeste por intermédio do colonizador português, ele mesmo influenciado pelos costumes dos mulçumanos que, durante oitocentos anos, dominaram a Península Ibérica. Sempre assim: colonizadores e colonizados, onde quer que existam, a impor seus hábitos e modos, uns aos outros.
O menino perguntou daquele chapéu sem abas, curtinho e engraçado, para voltar a ouvir o que lhe já fora dito. Influência judaica: a do quipá. De fato, no ambiente nordestino feito de espinhos, o chapéu do vaqueiro contém estrela de seis pontas (a de Davi) e tiras nas laterais a simbolizarem as costeletas longas dos judeus ortodoxos. Na caatinga, aquilo serve à proteção dos que rompem áreas de espinheiros em busca de reses fugidias. Protege a cabeça tanto quanto o gibão, o guarda-peito, as perneiras e as luvas protegem o restante do corpo daqueles que se arriscam ao galope entre os xiquexiques e mandacarus da mata seca. Naqueles couros crus e resistentes os espinhos, dificilmente, penetram.
Saudades daquele tamanho logo encaminhariam a conversa familiar para as frutas tropicais, notadamente, para as que nascem e crescem sob o sol nordestino cujos raios iluminaram o alvorecer de Maria.
Digamos que ela tenha, mesmo, este nome. E desculpemos seus exageros, porquanto oriundos de sua emoção. Assim, suas jacas e melancias nunca pesavam menos de 20 quilos, nem se faziam tão doces em qualquer outro lugar do mundo. A cana de açúcar era mencionada a fim de demonstrar o fato de que no Brasil, e não ali, temos caule que rende suco. Temos frutas que trocam os galhos pelo tronco das árvores (caso da jabuticaba) e temos, ainda, aquelas que apenas depois de cozidas podem ir muito bem à mesa com carnes, aves e peixes (caso da fruta-pão). E o que dizer, então, dos abacaxis, mamões, cajus, cajás, laranjas, mangas?
A lembrança dessas coisas e a assistência de uma família sempre obsequiosa e disposta a ouvi-la em pouco tempo acalmariam o espírito e abrandariam o tom de voz de Maria. Como de costume, o apoio dos que a amam logo daria à sua alma de tamarindo a doçura dos sapotis. Afinal, todos ali estavam cansados de saber que a copa, os galhos e o tronco de Maria, definitivamente, não foram feitos para aqueles campos de neve e gelo tão distantes do seu mundo. Compreendiam a razão das suas crises e, portanto, a desculpavam.
Eu soube que naquela noite, enternecida, ela deitou a cabeça no ombro do marido e dele aceitou o convite para o recolhimento. Despediu-se de todos com um fio de voz e subiu as escadas em busca da cama. Acho que John, nosso Lampião, ao fim de tudo, teve o melhor proveito do resto da noite desde que tenha tomado um banho caprichado e quente como aquele coração sertanejo. Maria, felizmente, é assim: mata suas aflições e suas zangas com suas saudades.