Essa última condição explica o quanto há de metalinguagem em seus escritos. Para Hildeberto, o ato de criar implica a reflexão sobre o poema e o questionamento sobre as relações entre a literatura e o estar no mundo. O poeta se justifica por sua criação ou, para além da artificiosidade desse fazer, centra-se na perquirição do homem com suas lacunas e contradições? A poética do nosso autor tem as marcas desse dilema, que lhe serve dolorosamente de combustível.
Na busca de resolvê-lo, Hildeberto procede a um mergulho às vezes despudorado em si mesmo. Sabe que um lírico não pode escapar à confissão e busca realizá-la remontando a uma das matrizes do confessionalismo, que é a literatura romântica. É claro que nesse romantismo não há lugar para idealizações – seria ingênuo supor que houvesse. Trata-se, no que diz respeito a ele, da vertente romântica que contempla o desencanto com o amor e a atração pela morte. Um romantismo, diga-se, em que também está presente a contraface irônica.
Em mais de uma passagem, o eu lírico confessa a descrença no sentimento amoroso, visto como uma ficção incognoscível e fugaz. Quanto ao desejo de morte, aparece o mais das vezes como alternativa ao tédio de viver. Nesse sentido, são bastante significativas duas das epígrafes que escolheu. Uma, de Carlos Drummond de Andrade, na qual há o reconhecimento de que “os suicidas tinham razão”. A outra, de Cioran, que nomeia a raiva ou o abatimento como os estados emocionais em que o indivíduo de fato percebe a sua identidade.
É no poema “Romance de formação” que Hildeberto refere o essencial do seu drama. Não à toa, ele escolhe a denominação de um gênero da prosa para intitular essa composição. Essa escolha espelha o propósito de, por meio da síntese e da densidade da linguagem poética, contar a sua história. Não pormenorizando os eventos, como é próprio dos clássicos romances desse tipo, mas sumarizando-os em imagens capazes de representar o que, no transcorrer da existência, imprimiu-lhe profundas marcas no espírito.
Alguns dos temas presentes no “Romance de formação” se repetem nos “Poemas esparsos”, muitos dos quais evidenciam a obsessão com a morte, o apelo à mulher/mãe, a evocação de personagens que o marcaram na infância e a própria validade da poesia, que transborda dos conceitos que visam capturá-la. A despeito de constituir um dizer, ela é na verdade indizível. Essa percepção do “nada das palavras latejando/ no poema” (impossível não associá-la ao “molambo da língua paralitica”, de que fala Augusto dos Anjos) remete ao inominável com o qual o poeta se depara em sua inútil busca de representar a si e ao mundo.
Muito ainda haveria a dizer sobre a poesia de Hildeberto, obreiro incansável das palavras, para quem o cultivo da literatura tem sido uma busca de preencher a si e um meio de se dar aos outros.Há por fim que se destacar o lado social do autor, que tem as amizades como uma forma de enriquecimento pessoal e expansão de horizontes. Um expressivo exemplo dessa índole amical transposta para a produção poética está na composição “Visita ao pintor”, na qual recompõe o ambiente físico e psicológico com que se depara na casa de Flávio Tavares. A visita é um pretexto para descrever o perfil de membros da família, rememorar outros encontros e, sobretudo, adentrar o universo do artista, em cujo ofício identifica pontos em comum com a prática da poesia.
“Ele, o pintor, lida com a tinta
como o poeta lida com ela,
a palavra, rubi de cor sem cor.
O pintor é um poeta.”
E se em muitos de seus poemas a mulher aparece como uma entidade inalcançável, a visão de telas do pintor leva-o a perceber na figura feminina uma força atuante, que seduz e maltrata. Para isso não é preciso despojá-la das marcas que definem a sua concreta e real humanidade, conforme se percebe em versos como os seguintes, nos quais a “enumeração caótica” concorre para lhe dimensionar a imagem física e espiritual: “Principalmente vejo mulheres,/ com crueldade e beleza, /verrugas e sinais, arrepios,/ maldição.”
Muito ainda haveria a dizer sobre a poesia de Hildeberto, obreiro incansável das palavras, para quem o cultivo da literatura tem sido uma busca de preencher a si e um meio de se dar aos outros. Esses 70 anos coroam uma disciplina ascética e um labor criativo respaldado em muito estudo e reflexão. Entendo que para muitos os setent’anos sejam o momento de avaliar o que foi feito, proceder a uma espécie de acerto de contas, e por esse aspecto tenham mesmo o caráter de um fim. Mas duvido que essa alternativa se aplique ao nosso autor. Conhecendo a sua insatisfação com o que produz e o amor que dedica aos desafios e mistérios da poesia, não tenho dúvida em dizer que, para ele, essa data prenuncia um novo começo.