Um menino com aparentes cinco anos a reclamar do acalanto materno, em vídeo no YouTube, trouxe-me à memória a Cuca e o Boi da Cara Preta da minha infância. “Por que a Cuca vem me pegar quando meu pai vai trabalhar? Por que vocês vão me deixar sozinho?”, perguntava o filho bem aflito à mãe que mal continha o riso por trás da câmara com que gravava aquela indignação.
A atualidade da cena, conferida na postagem de poucos dias, me fez cair o queixo. Quer dizer que mães com idade para ser netas minhas ainda põem suas crianças na cama com a centenária Cuca?
Quando minha avó Amélia chamava o Boi da Cara Preta para pegar o pirralho com medo de careta que um dia fui, eu desviava o bicho para o meu irmão: “Vem pegar Maninho”. E o mano fazia o mesmo comigo, caso estivesse nossa avó à beira da cama dele. A Cuca, por certo, advém dos tempos coloniais e assustou, igualmente, a infância dos pais da Dona Amélia.
E fico a me perguntar: por que neste Brasil imenso e desigual as canções de ninar mais recorridas ainda têm versos de medo e dor? Muito pequeno, eu já detestava aquele cravo que brigou com a rosa, aquele Romeu às avessas que, merecidamente, ficou doente enquanto a pobrezinha despetalava.
Eu não, violão. Pronto, acabo de resgatar um dito dos anos de 1940 ou 50, quando o velho Haroldo Barbosa traduziu para melhor “Hi Lili, Hi Lo” e disso fez uma canção de passarinho. Cantei-a para meus filhos e neto. E para eles também cantei marchinhas de carnaval.
Miguelzinho, filho do meu primogênito, aos quatro anos de idade, quase matou de rir a professorinha da pré-alfabetização ao soltar a voz na sala de aula: “Allah-la-ô, ô ô ô. Mas que calor, ô ô ô”. Sabem não? É marcha que fala da travessia do Saara sob um sol quente de queimar a cara, composta por outro Haroldo, o Lobo, para sucessivos carnavais. “Allah, mande água pra Ioiô, mande água pra Iaiá, meu bom Allah”, rezavam os velhos e saudosos foliões, ano após ano, nos hoje inexistentes bailes de salão. Melhor isso do que cantigas que não ninam nem nanam.
Por conta dos meus embalos com temas carnavalescos meu primeiro filho certa vez me pediu para ir à casa de Noca, onde tudo é bom e se tem o que se quer. Propus que ele esperasse a fase adulta. O do meio já quis ser soldado em Israel por supor que Dona Sara, o sargento, e Raquel, o coronel, exercessem comando menos rigoroso e mais suave. Mas isso foi antes, muito antes, das desgraças, agora, ali agudizadas.
Eu soube que uma organização não governamental da Alemanha, a “Liederprojekt”, reuniu canções de ninar de mais de 50 países para estreitar e fortalecer os laços entre os bebês e seus cuidadores. Posso perder, mas aposto em que os Bois da Cara Preta e do Piauí – este último encarregado de pegar menino que não quer dormir – não entram na lista do livro e CDs lançados por essa ong com melodias e letras de amor e desvelo. Nem isso nem a Cuca e o cravo raivoso.
Lá fora, entoam-se para menino novo canções de estrelinhas, brilho lunar, raios de sol, amamentação, natureza, jardins, bichinhos, natais e temas do dia a dia. Se perdida essa aposta, terei perdido, também, a esperança na humanidade.
Mas, afinal, o que diferencia o acalanto nacional das cantigas que embalam os outros filhos das Américas, Europa e Ásia? Creiam, a respeito deste assunto há interpretações a dar com o pau, opiniões para todos os gostos. O tema tem rendido, inclusive, teses acadêmicas com bancas examinadoras de candidatos a mestres e doutores.
Uma delas me conduz ao entendimento de que, por aqui, as cantigas que impõem a obediência com as ferramentas do medo decorrem das dores da escravidão e do colonialismo. De algum modo, isso fixou-se mais incisivamente na alma brasileira. As pretas velhas e as amas de leite embalavam com seus temores, desesperanças e padecimentos os filhos e filhas das sinhás nas fazendas e nas vilas de antigamente. Portanto, não é de espantar que os monstros apresentados a mim e aos meus irmãos por uma avó cuidadosa ainda assustem, num edifício de classe média, o filho de uma mãe moderna e, certamente, não menos carinhosa. É que ela embala sua criança com modos centenários, naturalizados e perpassados de geração em geração.
Desacalanto... Não procurem o termo no dicionário. Assim o façam no título de Francis Hime para este seu poema, um apelo a quem o embalou. São versos com tudo ao contrário:
Acorda, meu pai
Não te deixo dormir
Não toque em estrelas
Não vá por aí
Afasta o delírio
Não prove do mar
Não ouça a Iara
Do rio chamar
Acorda, meu pai
E me ajuda entender
Por que tanta fúria
Tanto malquerer
Eu estou muito assustado
Com o mundo que eu vi
Acorda meu pai
Não te deixo dormir
A noite se encosta
Num poste de luz
Em pó se desfaz
Em fragmentos azuis
Aos pés de um menino
A cidade afundou
Levando o vazio
De quem não sonhou
Sou moço de longe
De longe te ouvi
Dizendo: "Meu filho,
Não vá por aí"
Não toque em estrelas
Não prove do mar
Não ouça a Iara do rio
De noite chamar.
Já ouviram esta canção? É linda