Meu caro confrade Thélio Farias, Sempre é muito bom ver que Augusto dos Anjos é frequentador assíduo do circuito crítico-literár...

Augusto, Ciência e Poesia

augusto anjos poesia paraibana
Meu caro confrade Thélio Farias,

Sempre é muito bom ver que Augusto dos Anjos é frequentador assíduo do circuito crítico-literário, o que nos mostra, de modo incontestável, a importância da sua poesia. Agradeço ao amigo, a postagem do artigo “A Ideia, de Augusto dos Anjos”, de Wilberth Salgueiro, no jornal Rascunho, o que me deu a oportunidade de fazer mais uma reflexão sobre a obra do nosso poeta. Gostaria,
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Rascunho, ed. 294 ▪ outubro/2024
pois, de fazer algumas considerações ao texto.

Em primeiro lugar, mesmo tendo consciência das limitações que o espaço e o veículo jornalístico impõem a quem escreve, senti que o articulista levantou dados, citou alguns críticos, mas ficou na abrangência do poema, mostrando um cuidado maior com a forma do que com a essência. Acredito, sim, que em outra circunstância, ele poderia ter desenvolvido mais a análise desse soneto ímpar de Augusto. Em segundo lugar, parece-me que muita gente ainda se encanta com algo, cuja discussão considero irrelevante: a filiação estética de Augusto dos Anjos. Entenda, meu amigo, que o fato de eu considerar uma discussão irrelevante não significa que alguma pessoa não possa trazê-la à baila. Como bem disse o articulista, há traços de vários estilos literários, sem que o poeta do Pau d’Arco se restrinja a algum em especial. O que me chama a atenção, no entanto, é que sempre que trazem à tona essa discussão, dão um jeito de colocar no meio o pré-modernismo, que nem tem um estilo definido, nem é um período literário, cabendo nesse espaço, mais cronológico do que estético, muita coisa. O meu argumento maior é que Augusto dos Anjos não pode ser pré-modernista, no sentido de ter alguma relação com o que foi o Movimento Modernista de 22, pelo fato de que sua poesia está, nitidamente, a contrapelo dessa estética. Acredito que bastaria dizer que o autor do
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Augusto dos Anjos ▪ 1884—1914
Eu é um poeta de estilo e dicção únicas, na Literatura Brasileira... e sempre moderno.

Quando afirmo que o articulista, apesar de trazer novamente o poeta ao circuito crítico, ficou na abrangência, cuidando mais da forma do que do conteúdo, também não gostaria, amigo Thélio, de que tal afirmação fosse considerada como desmerecedora do texto ou do seu autor. Tendo feito esse esclarecimento, trago para a discussão um argumento que me permite essa observação. A angústia com a expressão literário-artística ou com a expressão linguística usual não está apenas no soneto A Ideia. Este é um poema-síntese dessa aflição com o expressar-se. Na realidade, há uma recorrência dessa angústia linguística, ao longo do Eu, procurando revelar a existência de rupturas entre o pensamento e a fala; rupturas entre a tríade pensamento-fala-escrita, sendo muito maior o abismo entre a fala e a escrita do que entre aquela e o pensamento, pelo fato de que a fala é natural e a escrita é artificial. Todo escritor lida com essa angústia, consciente da existência de uma falha, jamais consertada e/ou concertada, na realização da sua obra. Podemos encontrar essa recorrência angustiante, na obra de Graciliano Ramos, em que vemos 3 escritores em luta com a expressão escrita – João Valério (Caetés), Paulo Honório (São Bernardo) e Luís da Silva (Angústia) – e um personagem com grande dificuldade e grande aflição com a expressão oral – Fabiano (Vidas secas). Todos se vendo como fracassados.

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Graciliano Ramos ▪ 1892—1953
Corroborando esse raciocínio, vemos como o “mulambo da língua paralítica”, de A Ideia, encontra paralelo no soneto O Martírio do Artista e, para não me alongar muito, é irmão gêmeo da excepcional estrofe de As Cismas do Destino (Parte II, versos 145-148):

Ser cachorro! Ganir incompreendidos Verbos! Querer dizer-nos que não finge, E a palavra embrulhar-se no laringe, Escapando-se apenas em latidos!

Por fim, meu amigo e dileto confrade, ouso expressar apenas uma discordância direta com o articulista, quando ele se refere a

“não se saber com exatidão as fontes com as quais o poeta teve contato para elaborar seus ‘poemas científicos’, alguns estudos mostram o impressionante e atualizado conhecimento que Augusto dos Anjos possuía em relação aos exóticos, enigmáticos, quase herméticos termos que usava à exaustão.”

Vamos por partes. Não se trata de “poemas científicos”, mas de utilização de uma linguagem científica, transfigurada em poesia da melhor qualidade. Se fossem poemas científicos, a poesia de Augusto dos Anjos estaria morta e enterrada. O grande e conceituado biólogo evolucionista Richard Dawkins tem feito um esforço, obtendo pleno êxito, para mostrar o quanto a Arte e a Ciência se assemelham,
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na “descoberta das coisas que nunca vi”, como diria Oswald de Andrade. Seus livros, como A grande história da evolução, O maior espetáculo da Terra, Desvendando o arco-íris, A magia da realidade, entre outros, são verdadeiras exposições da melhor ciência evolucionista, tendo como amparo o desvendamento dos muitos mistérios da vida, que bem podem ser alçados à condição de extrema poesia.

Sem nunca ter lido Augusto dos Anjos, e se lesse acredito que Dawkins não mudaria uma única palavra, o cientista revela que a poesia é mais do que versos e que a ciência é mais do que prosa insossa, e que precisamos acordar de uma situação em que “há um anestésico da familiaridade, um sedativo comum, que entorpece os sentidos e oculta a maravilha da existência” (Desvendando o arco-íris: ciência, ilusão e encantamento; tradução de Rosaura Eichenberg, São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 24). Exatamente o que faz o nosso poeta, ao trazer a ciência para dentro da poesia. Veja, meu caríssimo Thélio, o que diz Dawkins, reforçando a citação anterior:

“Cada um de nós é uma grande cidade de células, e cada célula, uma cidade de bactérias. Somos uma gigantesca megalópole de bactérias. Isso não suspende a mortalha anestésica?”
op. cit., p. 27

Não é uma afirmação que nos soa familiar, quando temos em mente os poemas do Eu? E complementa Dawkins: “Romper a anestesia da familiaridade é o que os poetas fazem de melhor.” (op. cit., p. 34). Não é isto que Augusto dos Anjos faz, embora ainda se fale de poemas científicos ou de cientificismo?

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Richard Dawkins
Insistindo na leitura de Dawkins, acredito, Thélio que ele entendeu bem a diferença entre a ciência como objeto do poema e que se torna poesia, e o poema que mata a ciência e a poesia, o que poderia ser chamado de cientificismo. Observe, meu querido confrade, como Dawkins estabelece esses limites ao criticar o médico e cientista, Erasmus Darwin, avô do grande evolucionista, que escreveu a sua obra científica em versos:

“Não se trata, é claro, de que a ciência deva ser declamada em versos. Os dísticos rimados de Erasmus Darwin, o avô de Charles, embora surpreendentemente bem considerados na sua época, não elevam a ciência.”
op. cit., p. 37

Até parece que Dawkins leu a Arte poética de Aristóteles (não duvidaria!), ao estabelecer que escrever em versos não faz do texto uma poíesis... Retornando à discordância, acredito que denominar a utilização da linguagem científica, na poesia de Augusto dos Anjos, de termos “exóticos, enigmáticos, quase herméticos” é desconhecer que cada um deles tem sentido dentro de seus poemas, não estão ali como ornamento ou como demonstração fátua de um conhecimento superficial, como modismo, que, passado o ímpeto do momento, cai no esquecimento. Concordo que, em alguns momentos,
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Victor Hugo ▪ 1802—1885
determinados vocábulos e construções podem ser chocantes, diante do inusitado na poesia brasileira, mas o sublime também comporta o grotesco, como está bem definido por Victor Hugo, desde 1825, no prefácio da sua peça Cromwell. Vai nesse sentido a pergunta inquietante de Dawkins: “Porque um poeta celebraria apenas pessoas, e não a trituração lenta das forças naturais que as criaram?” (op. cit., p. 35).

Todos os termos utilizados por Augusto dos Anjos, meu caro Thélio, não só têm uma significação devidamente explicada pela ciência, como portam uma função intrínseca dentro de cada poema. Nada está sem articulação. Cabe a quem deseja estudá-lo fazer o difícil e dolorido trajeto às fontes utilizadas pelo poeta. É uma questão de horizonte de expectativa do leitor.

Expresso, finalizando, uma última discordância, com relação ao articulista. Para o léxico das filosofias orientais e para o Budismo, em especial, as obras da professora Sandra Ericksson, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, dão conta de grande parte, com competência e didatismo. Destaco, inclusive, a sua excepcional tese para Professora Titular, de cuja banca fiz parte, em 2019, com grande satisfação – Corpos de luz & êxtase: xamãnismo & resistências poéticas na poesia de Augusto dos Anjos.

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Ernst Haeckel ▪ 1834—1919
No que diz respeito à maior parte do léxico científico de Augusto dos Anjos, na área da Embriologia ou das Ciências Biológicas, em geral, e na área da Evolução das Espécies, posso afirmar que sua utilização e compreensão se originam da leitura do cientista alemão Ernst Haeckel, mais do que da leitura de Darwin, em especial do livro Os enigmas do universo, publicado em 1899 e traduzido para o francês, em 1902, a que Augusto deve ter tido acesso.

No mais, meu amigo, reafirmo o meu agradecimento pela postagem e por trazer novamente o nosso querido poeta ao centro do debate literário e ver como ele consegue transformar a ciência em poesia, assim como presumidamente fariam outros grandes artistas, no dizer de Dawkins, se tivessem tido a percepção de Augusto dos Anjos:

“É só pensar no ‘Dies Irae’ que a contemplação do destino dos dinossauros poderia ter arrancado de Verdi, quando há 65 milhões de anos uma rocha do tamanho de uma montanha saiu silvando do espaço profundo, a 16 mil quilômetros por hora, para atingir em cheio a península do Yucatán, e o mundo escureceu. Tentem imaginar a ‘Sinfonia da Evolução’ de Beethoven, o oratório de Haydn sobre o ‘O Universo em Expansão’, ou a epopeia A Via Láctea de Milton.”
op. cit., p. 46

Um grande e fraterno abraço,

Milton

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