Sempre é oportuno relembrar que a leitura atenta de um livro começa pelo nome com o qual o autor convida o leitor à leitura...

A Musa como salvação no absurdo da vida no livro RAREFEITO – William Soares dos Santos

william soares santos livro poesia rarefeito
Sempre é oportuno relembrar que a leitura atenta de um livro começa pelo nome com o qual o autor convida o leitor à leitura – sobretudo quando se trata de um livro de poemas. O poeta costuma buscar a densidade em cada palavra, um visgo que grude na capa toda uma carga de significantes e emoções transfigurados em linguagem.

No caso do livro Rarefeito, do poeta e professor William Soares dos Santos, recentemente publicado pela Ibis Litris , esta observação inicial se faz relevante. Afinal, trata-se de um autor oriundo da academia e estudioso de literatura. Esse aspecto também não passou despercebido ao poeta e ensaísta Antônio Carlos Secchin que, no início do seu prefácio ao livro, nos diz que, “apesar da insinuação do título, rarefeito, o autor, parece operar no domínio de um real bastante denso, pleno de amores e de humores.”

william soares santos livro poesia rarefeito
O título do livro, em consonância com o que nos diz o linguista José Augusto Carvalho, sugere, em um primeiro momento, pelo menos duas leituras: o adjetivo rarefeito (que significa "menos denso") e a palavra-cabide ou palavra-portmanteau (também chamada "palavra entrecruzada") rarefeito, formada pelo amálgama do adjetivo raro com o substantivo efeito (raro efeito).

No primeiro caso, o título sugere simplicidade; no segundo, sugere algo novo, raro, diferente. Em ambos os casos, o título sugere ou antecipa o efeito que os poemas provocarão no leitor. Vasculhemos então o que inspira, expira e aspira o autor de Rarefeito.

E o sentido de Rarefeito já ensaia seu contorno nos versos do poeta Inglês William Wordsworth, escolhidos para compor a epígrafe da obra. Neles, o grande poeta romântico homônimo de nosso autor, instiga seu eu lírico a erguer-se: “Up!up! and drink the spirit breathed/From dead men to their kind.”

Somente a literatura e o acaso possibilitaram que esses versos escritos no século XVIII chegassem aos ouvidos do nosso poeta, e soassem assim tão pessoais, provocando-o ao inquirir: “Why, William, on that old grey stone,/
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William Wordsworth CC0
Thus for the length of half a day,/ Why, William, sit you thus alone,/ And dream your time away? ” Finalizando com um desafio:”Where are your books? – that light bequeathed/ To Beings else forlorn and blind!

E já em Rarefeito, primeiro poema do livro, William Soares nos diz, a seu modo, do imenso desconhecido contido entre o céu e as profundezas terrestres; inicia assim um diálogo presente ao longo da obra – nesta feita com o homônimo William Shakespeare – com os cânones da poesia mundial.

Vejamos:

Quero ser tomado, elevado à montanha mais alta e submerso ao mar mais profundo. o que sei de mim é um constante não saber.

Ao seu modo, lançando mão da metáfora, o poeta também ensaia a superação do absurdo.

Sabemos o sentido de urgência do homem contemporâneo, a necessidade de lançar-se no desafio dos limites, na busca de embriagar-se com endorfina.

Enquanto seus coetâneos, de forma cada vez mais radical e, por vezes, inconsequente, buscam desafiar seus limites
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William Trost Richards
se confrontando com ambientes inóspitos, com condições atmosféricas pouco afeitas ao conforto, seja nos picos montanhosos - que se caracterizam por um ar menos denso (rarefeito) e com menor concentração de oxigênio – seja nas profundezas dos Oceanos que oferecem o risco das grandes pressões, comprometendo a lucidez e a coordenação motora, o poeta também busca o desconforto que lhe proporcionará – pelo menos em tese – a experiência criadora.

Quero ser tomado de mim, atravessado pela luz mais pura que antes nunca se afigura. acordei num dia novo e claro, no qual o ar não está rarefeito e nada cala dentro de mim. Quero ser tomado do mundo. a minha passagem será apenas vento, talvez sombra, talvez tempo, mas nunca desatino. Brancura serena da primavera, negrume pacificador da alta madrugada.

Disse-nos Emil Cioran: “Escrever seria um ato insípido e supérfluo se pudéssemos chorar à vontade... Se cada vez que os desgostos nos assaltam tivéssemos a possibilidade de nos livrar deles pelo pranto, as doenças vagas e a poesia desapareceriam. Mas uma reticência inata, agravada pela educação, ou um funcionamento defeituoso das glândulas lacrimais, condena-nos ao martírio dos olhos secos.” Daí a admiração de Cioran pelos poetas, por sua capacidade de mostrarem-se
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Emil Cioran @niltonvarela.cioran
isentos de pudor – e agora cito as palavras de Nietzsche – em relação às próprias experiências; esta capacidade única de explorar o que tantos tentam omitir e dissimular.

E o poeta dialoga com seu desassossego. Reconhece ser mais um pássaro, entre tantos, grudado nas partituras dos fios elétricos das grandes Metrópolis. Sabe seu espaço no sem sentido, e ensaia um arremedo de liberdade: Um pássaro não é o pássaro,/é um pássaro qualquer.//branco?/pode ser,/para combinar com o azul deste mar,/para ser livre como todos os ideais de vida.// livre como não sou,/livre como não sei o que é ser livre.// mas imagino,/tento,//um pássaro qualquer,/livre,/ser.

E “a dor ladra no tempo”, esse tempo só nosso, em que transgride¹ e nos diz o poeta: ainda que permanecesse/eu seria apenas a lembrança tangível/que insiste na permanência/da intangibilidade de ser. Quantos de nós não sentimos essa náusea sartreana diante da imanência…

E rodopia sem direção,/gira,gira o pião de Sísifo.

Diz-nos Camus que, diante do absurdo, uma das alternativas é o “salto” para a religião. No presente caso, vemos o eu lírico – nesta feita no poema “Crístico” —
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Albert Camus Wiki
apresentar-se como aquele que segue os preceitos cristãos da austeridade e do amor. É o herói que suplanta qualquer complexo de heroísmo.

Mas, ao modo de Augusto dos Anjos, William Soares nos diz que nem o poeta profeta sem intenção,/à margem da lição, nem o alquimista que dialoga com os símbolos de Jung, nem mesmo o físico que vê o mundo calculado,/matematizado, equilibrado não sabem o que é o mundo. São como uma criança, com seus olhinhos arregalados, esbugalhados de/surpresa diante da flor que recolhem/todas as manhãs.

Será o tempo uma brecha que esconde o vento que sopra no rosto imaturo do mundo; ou seria no rosto do homem?

O que resta ao poeta, qual o caminho possível diante da incerteza? A resposta vem de “um anjo azul” que propõe que o poeta toque sua lira. E é essa “lira moderna” que acalenta o poeta e o anjo. Ambos condenados – o imortal e o mortal – à “solidão eterna” dentro de um mundo-prisão circundado pela “grande muralha”.

E o poeta se rebela, e se lança ao mar, pois a leste está a mais bela baía do mundo:

No mar que me transporta, Vejo que não são os meus olhos que veem, Mas eu que vejo através dos meus olhos.
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Adolphe-Hippolyte Couveley
Eis aí o poeta ensaiando seu eterno retorno à Pasárgada…

Já na República de Platão, Sócrates alerta a Adimanto que as fábulas mentirosas compostas por Hesíodo e Homero seriam contadas aos homens. E entre elas encontrava-se a vingança de Cronos contra seu filho Urano. E, vencendo Cronos, o poeta insiste em despertar a cada dia:

o mundo pesa sobre mim, serpente incinerada do estar que me apeçonha em cada instante do viver, ainda quando rasga, sanguínea e fresca, a madrugada.

E eis que surge a Musa...

Somente ela me trará o grande sono na madrugada. O sono borbotado de azul, tão diverso do cativo desejo em que me encontro e que me aprisiona na imensidão do anoitecer.

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George Inness
Em seu livro L´amour fou, André Breton nos apresenta o conceito de “acaso racional”. Aquele encontro “inesperado” ― inconscientemente já “agendado” ― com a musa. O grande encontro entre o poeta e a poesia. E muitos dos poemas trazem um poeta e suas luxúrias.

Mas uma nova surpresa — talvez mais uma vez a náusea existencialista leva o poeta a observar:

e eu sou feito um ladrão roubado pelo roubo que leva, neste anseio de mais abrir o sorriso da boca nascida.

O poeta retorna às areias da praia cantada e à sua calçada de ondas negras e alvas. E depara com os indivíduos que buscam, em rumos distintos, alinhavar suas vidas e por um instante se esquece que é pós-moderno.

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Charles Meynier
Whitman afirma e o poeta inquire: o que fazer com essa inquietude constante e com o desejo de ser muitos? ― lidar com a contradição humana.

Mas restam-lhe a musa e o amor. E eis aí a densidade possível ao poeta – a pele e o gozo.

Entretanto tudo indica que o meu caminho mais longo será mesmo a solidão.

Mas talvez, como diz o protagonista do livro Náusea, de Sartre, “a margem da solidão”. Um ponto equidistante entre o isolamento e o acesso ao outro.

Mas como isso acontece? Talvez o poeta dissimule, pareça perdido, rendido aos atos costumeiros, diuturnamente ... Mas, quando do primeiro estalo da palavra, talvez ele se sobressalte e se lance ao chão para salvar a flor ... Resgatar a imagem primeira da musa:

Torna-me à mente Do teu corpo A imagem da primeira vez. eu, inquieto mendicante, de teu corpo desejante, a febre tolhia-me o sono, e entre a penumbra surgiu a tua imagem a desnudar-se em plena alvura enquanto tudo se apascentava no hemisfério. Embora não me governasse, Me detive em tuas costas, Como se os astros, a aurora E o silêncio compactuassem. Trazia-me o ansiado deleite Fazendo de meu corpo a chave mestra Que abria portas à sinistra-destra. Pensamentos revoavam, Enquanto eu calava e me concedia, Tímido e inexperiente, Às voltas de teu corpo. Fechei os olhos, O que palpitava de novo em meu peito? Menino de nove mais nove sóis, Tudo se confundia com desejo., Todas as palavras então ficaram, Tentativas inexpressivas de retratar A gravidade de teu corpo.
william soares santos livro poesia rarefeito
Jean-Marc Nattier
E eis novamente William Wordsworth a nos dizer que “a poesia é o transbordamento espontâneo de sentimentos intensos: tem a sua origem na emoção recordada num estado de tranquilidade”.

O que propõe de novo um poeta pós-moderno? Talvez o reencontro com a musa, não de uma forma piegas e descompromissada, mas sim através dos clássicos e dos grandes poetas (complementação de rarefeito).

Pois ele nos diz como no poema intitulado Ulisses:

depois de tudo deixo o teu leito com tudo o mais de óbvio: molhado de suor, com a face relaxada, e uma ferida encravada no dorso. deixo o teu leito como quem cumpriu uma promessa, esperando o pão com manteiga que chega com o cheiro do café perpassado pela alvorada. deixo o teu leito com a incerteza de um retorno tranquilo à minha ítaca sonhada - barco sem porto faço de ti meu ancoradouro – deixo o teu leito com um adeus desacenado de quem procura te encontrar, – após batalhas contra troianos, ciclopes e sirenes encantadas – Na próxima dedirósea manhã.

william soares santos livro poesia rarefeito
William Soares dos Santos @incomunidade.pt
Diz-nos Antônio Carlos Secchin no prefácio que “... é nessa tensão – de dizer-se pelo viés de transformar-se em algo sempre diverso – que reside a força maior de rarefeito”.

Não sou crítico, nem pertenço à Academia. Percorri o livro como leitor de poesia e poeta, e digo que não foi difícil. Vivo neste mesmo ambiente, muitas vezes inóspito; embriago-me na mesma altitude onde é raro o oxigênio e onde a tontura deixa obnubilada nossa memória; indago as mesmas coisas; percorro os mesmos beirais , vou de leste a oeste, consciente da imanência do corpo e, como no poema, “Vésper”,

eu, vésper celeste, despeço-me de minha imortalidade para, enfim, encontrar em teu corpo - em não mais que uma hora eternamente breve – a luminosidade inebriante do pulsar do perecível

agarrando-me à musa, nessa falsa transcendência do infinito instante.

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