O olfato é considerado o sentido mais primitivo, e estudos revelam que o humano é capaz de distinguir nada menos do que 400 mil odores diferentes. Diz-se que, inclusive, o primeiro sentir quando se conhece uma pessoa é de seu cheiro, ainda que esse processo se dê, na maioria das vezes, de forma inconsciente.
A escritora Bettina Malnic, em “O cheiro das coisas”, postula como, corriqueiramente, “não prestamos (muita) atenção ao que nosso nariz está nos dizendo. Os cheiros que nos
Um bebê pode reconhecer o cheiro de sua mãe, com poucos dias de nascimento. E vai saber que aquele cheiro é apenas de sua mãe. Ao longo da vida, vai associando outras pessoas aos odores que elas exalam. E pode acumular um repositório imenso de odores, como um catálogo de identidade daquelas pessoas de seu convívio.
Patrick Suskind, em seu livro “O perfume”, traz o personagem Grenouille que, tendo nascido sem cheiro, termina sendo rejeitado pelas demais pessoas. Então, premido pela aversão, decide enveredar pelo mundos dos perfumes, até encontrar uma
Então, é esperado que esse sentido também transborde para a literatura, e o fato é que odores associados a lembranças de acontecimentos, pessoas, lugares e mesmo sentimentos estão presentes em várias obras da literatura, como uma ferramenta mnemônica significativamente importante na criação dos tropos constituintes de uma narrativa.
E o que dizer do cheiro do livro? Muitos leitores têm essa mania de cheirar o livro antes de comprar. Desfrutar da fragrância que evola das páginas, como uma antevisão do prazer que trará a sua leitura. Porque o livro tem um cheiro característico eivado de significados. Parece uma mensagem do autor, que irá se completar no leitor.
James Joyce inicia seu caudaloso romance Ulisses, com um longo capítulo que trata de um café da manhã, mas apenas no 4º apresenta o protagonista, fazendo uma alusão a sabores e odores: “O senhor Leopold Bloom comeu com prazer os órgãos internos de animais e aves”, escreveu, destacando como Bloom, mesmo sendo judeu, comeu rim de porco frito na manteiga, algo que, obviamente, tem um odor característico.
Sipa
Ao longo das páginas, a autora nos conduz numa narrativa que envolve o seu infortúnio que, em algum momento, Helena vai indagar, enquanto sangra: “Este será o cheiro
Mas, enquanto Helena sofre, lembranças são evocadas, sempre pelo viés do odor, do cheiro. Desde o aroma de um energético, que associa a eventos ocorridos num bar (Atol), e que evoca também o cheiro da amizade, posto que ali eram frequentes os encontros e a afirmação de sua amizade, mas também de “confiança, cumplicidade, carinho e respeito”.
Cheiro de mato, de vegetação molhada. Aliás, a língua portuguesa tem uma palavra notável para definir esse odor que vem da terra após uma chuva: petrichor. A palavra é de uma beleza singular. No livro, a autora associa esse, digamos, petrichor, a momentos da infância quando colhia frutos no pé, quando ia para a ordenha das vacas e se deleitava também com cheiro de leite espumoso. Seguem os cheiros de jasmim, que associa à casa das tias. Cheiro do bagaço da cana, e suas andanças pelo engenho da família. Lembra o cheiro do mel, mas também a repulsa ao bagaço exangue fermentado. Os odores do mar, pela primeira vez no mar, e todos os elementos que permeiam a vida à beira-mar, os mariscos, a reunião em torno da mesa, com seu típico “sabor marinho”.
Unsp
Uma curiosidade: a fragrância da lavanda inglesa, que evocava o pai, o “protetor da família”. E lembra como seu pai “conseguia ser sério e brincalhão, mas sabia impor sua autoridade”. E o cheiro da lavanda trazia os traços da personalidade do pai, bastava lembrar do armário do banheiro, onde o cheiro do perfume se mesclava ao enternecimento da filha pelo pai.
Assim, de cheiro em cheiro, a autora urde a estruturação de sua narrativa, permeada pelo sofrimento de uma Helena que sofre, e busca na memória trazer todas as lembranças associadas aos odores que marcaram sua vida. E tece com tal competência que o leitor é levado a seguir até o final, enquanto, obviamente, pode reconhecer muitos daqueles cheiros em suas vidas.
Ana Paula Cavalcanti Ramalho Acervo pessoal