O olfato é considerado o sentido mais primitivo, e estudos revelam que o humano é capaz de distinguir nada menos do que 400 mil odore...

Uma aventura no mundo dos odores

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O olfato é considerado o sentido mais primitivo, e estudos revelam que o humano é capaz de distinguir nada menos do que 400 mil odores diferentes. Diz-se que, inclusive, o primeiro sentir quando se conhece uma pessoa é de seu cheiro, ainda que esse processo se dê, na maioria das vezes, de forma inconsciente.

A escritora Bettina Malnic, em “O cheiro das coisas”, postula como, corriqueiramente, “não prestamos (muita) atenção ao que nosso nariz está nos dizendo. Os cheiros que nos
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cercam induzem emoções e comportamentos que muitas vezes não são conscientemente percebidos”. Portanto, desdenhar do olfato é subestimar um sentido que pode determinar muito da aventura de viver. “Possuir um cheiro é mostrar ter uma qualidade existencial de humanidade, e a percepção dos cheiros é a ponte para o subconsciente e irracional”, vai defender o alemão Ralf Hertel, em seu livro “ Percepção de sentido no romance britânico”, apesar de que o autor também questiona a dificuldade de verter a percepção subjetiva de um odor em palavras.

Um bebê pode reconhecer o cheiro de sua mãe, com poucos dias de nascimento. E vai saber que aquele cheiro é apenas de sua mãe. Ao longo da vida, vai associando outras pessoas aos odores que elas exalam. E pode acumular um repositório imenso de odores, como um catálogo de identidade daquelas pessoas de seu convívio.

Patrick Suskind, em seu livro “O perfume”, traz o personagem Grenouille que, tendo nascido sem cheiro, termina sendo rejeitado pelas demais pessoas. Então, premido pela aversão, decide enveredar pelo mundos dos perfumes, até encontrar uma
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fragrância (do amor) que o torne humano, pois "o odor é a essência, e o que não tem essência não existe". A trajetória da busca pelo perfume perfeito é o que permeia toda a narrativa até seu desfecho trágico.

Então, é esperado que esse sentido também transborde para a literatura, e o fato é que odores associados a lembranças de acontecimentos, pessoas, lugares e mesmo sentimentos estão presentes em várias obras da literatura, como uma ferramenta mnemônica significativamente importante na criação dos tropos constituintes de uma narrativa.

E o que dizer do cheiro do livro? Muitos leitores têm essa mania de cheirar o livro antes de comprar. Desfrutar da fragrância que evola das páginas, como uma antevisão do prazer que trará a sua leitura. Porque o livro tem um cheiro característico eivado de significados. Parece uma mensagem do autor, que irá se completar no leitor.

James Joyce inicia seu caudaloso romance Ulisses, com um longo capítulo que trata de um café da manhã, mas apenas no 4º apresenta o protagonista, fazendo uma alusão a sabores e odores: “O senhor Leopold Bloom comeu com prazer os órgãos internos de animais e aves”, escreveu, destacando como Bloom, mesmo sendo judeu, comeu rim de porco frito na manteiga, algo que, obviamente, tem um odor característico.

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Sipa
Em seu livro “A marca de um cheiro”, a escritora Ana Paula Cavalcanti se propõe ao desafio de passar essa mensagem, de transformar em palavras os odores que marcaram momentos importantes dos personagens. É Helena, que se confunde com a própria narradora, quem vai confessar: “Os momentos da minha vida são eternizados pelo cheiro particular de cada coisa, pessoa, lugar.” Está aí a matriz que conduz a tessitura do romance.

Ao longo das páginas, a autora nos conduz numa narrativa que envolve o seu infortúnio que, em algum momento, Helena vai indagar, enquanto sangra: “Este será o cheiro
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da minha morte?” Como um alerta ao leitor de que alguma tragédia poderá estar a caminho e, nesse fio condutor, a autora busca fisgar o leitor, enquanto mantém em suspense uma revelação.

Mas, enquanto Helena sofre, lembranças são evocadas, sempre pelo viés do odor, do cheiro. Desde o aroma de um energético, que associa a eventos ocorridos num bar (Atol), e que evoca também o cheiro da amizade, posto que ali eram frequentes os encontros e a afirmação de sua amizade, mas também de “confiança, cumplicidade, carinho e respeito”.

Cheiro de mato, de vegetação molhada. Aliás, a língua portuguesa tem uma palavra notável para definir esse odor que vem da terra após uma chuva: petrichor. A palavra é de uma beleza singular. No livro, a autora associa esse, digamos, petrichor, a momentos da infância quando colhia frutos no pé, quando ia para a ordenha das vacas e se deleitava também com cheiro de leite espumoso. Seguem os cheiros de jasmim, que associa à casa das tias. Cheiro do bagaço da cana, e suas andanças pelo engenho da família. Lembra o cheiro do mel, mas também a repulsa ao bagaço exangue fermentado. Os odores do mar, pela primeira vez no mar, e todos os elementos que permeiam a vida à beira-mar, os mariscos, a reunião em torno da mesa, com seu típico “sabor marinho”.

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Unsp
Assim, à medida que a narrativa avança, a autora traz, digamos, uma espécie de inventário dos odores que marcaram muitos de seus momentos e pessoas. Cheiro do café torrado na fazenda, da manteiga feita há pouco, até mesmo o odor de um sabonete, que faz Helena recordar de sua mãe, “excelente dona de casa e patroa”, mas de “uma delicadeza infinita”.

Uma curiosidade: a fragrância da lavanda inglesa, que evocava o pai, o “protetor da família”. E lembra como seu pai “conseguia ser sério e brincalhão, mas sabia impor sua autoridade”. E o cheiro da lavanda trazia os traços da personalidade do pai, bastava lembrar do armário do banheiro, onde o cheiro do perfume se mesclava ao enternecimento da filha pelo pai.

Assim, de cheiro em cheiro, a autora urde a estruturação de sua narrativa, permeada pelo sofrimento de uma Helena que sofre, e busca na memória trazer todas as lembranças associadas aos odores que marcaram sua vida. E tece com tal competência que o leitor é levado a seguir até o final, enquanto, obviamente, pode reconhecer muitos daqueles cheiros em suas vidas.

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Ana Paula Cavalcanti Ramalho Acervo pessoal
Ana Paula estreou na literatura com o romance “A nudez de Laura”, depois lançou o livro de contos “Vidas”, inclusive em edição bilíngue, e, agora, aprofunda sua veia romanesca com “A marca de um cheiro”, e já demonstra a maturidade de uma escritora que prospecta as minudências da vida, resgatando a grandeza que existe na relação entre os odores e as palavras. Trata-se de uma obra singular, e que cobrará, sim, uma aventura do leitor pelas páginas de seu livro.

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  1. Pessoas , com tamanha sensibilidade para evocar o poder que o cheiro tem , possuem verdadeiramente uma alma perfumada. DENISE CARVALHO

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  2. Parabéns pelo texto, Helder Moura

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  3. DENISE CARVALHO

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  4. Excelente resenha. Além de bastante informativa, valoriza pelas transcrições partes relevantes do romance em sua variedade sinestésica. Sobretudo, mostra que o autor sabe onde tem o nariz.

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