Meu caro amigo e confrade José Mário.
Inicio agradecendo a sua participação, mesmo estando distante, no meu curso, Uma Introdução a Os Lusíadas, programado para dois sábados (21 e 28/09), num total de seis horas-aula, aberto a qualquer público interessado e ministrado no âmbito de nossa Academia Paraibana de Letras, patrocinadora do evento, em comemoração ao quinto centenário de nascimento de Luís Vaz de Camões.
Expresso, igualmente ao amigo, o meu respeito ao mestre Massaud Moisés, cujos ensinamentos, espraiados em vários livros, foi fundamental na formação de inumeráveis professores Brasil afora. É exatamente o respeito que tenho por ele, que me leva à reflexão sobre o que ele escreveu e que você trouxe à tona, tendo como tema o episódio do Velho do Restelo (Canto IV, estrofes 94-104), o famoso “velho de aspeito venerando”, “cum saber só de experiências feito” (excepcional decassílabo sáfico!). E, pondo-me ao seu lado, ouso discordar do mestre Massaud. Atente, meu amigo, que ouso discordar, mas não invalidar in totum a reflexão crítica feita.
Não há dúvida de que o discurso do Velho do Restelo tem na sua origem um recurso retórico, cuja substância invectiva não será observada, pois, se assim o fosse, o poema não existiria, tendo em vista que a condenação ao projeto expansionista português, à época, determinaria a inexistência do poema, cujo intento, bem explícito na sua Proposição (Canto I, estrofes 1-3), é cantar “as memórias gloriosas/ Daqueles reis que foram dilatando/A Fé e o Império”. O discurso, no entanto, não se exaure na sua forma retórica.
A nossa discordância, sua e minha, ao mestre Massaud, está na definição, um tanto superficial, de “vociferação inútil”, às duras palavras do velho, em um momento de grande tensão no poema, diante de tanta dor na partida para uma difícil empreitada, nunca antes tentada pelos lusitanos, separando famílias e empregando um grande cabedal de recursos, num projeto arriscado, que, deliberadamente, ignora o perigo real próximo a Portugal: o Ismaelita, numa alusão aos mouros e a sua religião islâmica, recentemente expulsos da Península Ibérica, após ali passarem 8 séculos, como invasores (711-1492).
Vejo o discurso contundente do Velho do Restelo, mais como a voz sábia, proveniente do já citado “saber só de experiências feito” (estrofe 94, 7), que o credencia a fazer a advertência ao projeto marítimo. É a voz sábia que se levanta não querendo deter o progresso ou a necessária expansão marítima, mas chamar a atenção para o perigo e para a inconsistência da Fama e da Glória, que dariam uma discutível Honra, vez que tudo está movido pela vaidade, pela ambição, pela ganância, pela prepotência, tão bem sintetizadas nos versos iniciais da famosa invectiva: “– Ó Glória de mandar, ó vã cobiça/Desta Vaidade a quem chamamos Fama!” (IV, 95, 1-2).
Não é à toa que, no desenvolvimento do discurso de Velho do Restelo, vemos as alusões a Adão (estrofe 98), a Prometeu (estrofe 103) e a Faetonte (estrofe 104), todos movidos por uma ambição que os levou mais a perdas do que a ganhos. O fruto proibido da árvore do conhecimento do bem e do mal, de que Adão prova, tem o seu paralelo na semente do fogo roubado por Prometeu, de que os homens provam, impondo a Adão a perda do paraíso, na narrativa judaica, que se estende à cristã, e aos homens a perda da Idade de Ouro. Complexa na sua construção, a fala do velho venerando mostra como os mesmos erros são cometidos sucessivamente, pouco se aprendendo com eles, não importa a tradição religiosa adotada: judaico-cristão ou mítica, o homem é o mesmo insensato, julgando-se sempre superior, desafiando frequentemente o que não deveria desafiar, no mais das vezes, tendo como resultado dessa ânsia de saborear os frutos proibidos, a imposição de frutos amargos aos seus pósteros.
Com Faetonte, o resultado não é diferente. Não contente de saber que é filho de Apolo Febo, “o moço miserando” (IV, 104, 1) exige guiar o Carro do Sol, um atributo exclusivo de seu pai, e acaba fulminado por Júpiter, porque a sua desastrada e fraca condução dos fogosos corcéis ameaçava a destruição do mundo.
Reflitamos um pouco mais sobre a complexidade do que diz o Velho do Restelo. Entre o mestre Massaud e Camões, ficarei com Camões. Há, sim um equilíbrio entre o que Camões põe na boca do personagem, o Velho do Restelo, no Canto IV, e o que o poeta diz no Epílogo do poema, que se estende entre as estrofes 145 e 156. O poeta, claro, louva o projeto de expansão português. Isto é ponto pacífico. Mas ele sabe dos riscos e os aponta, de uma maneira inequívoca. Ele é, no entanto, poeta, não é apenas um cidadão que está preocupado com o futuro de Portugal. A sua preocupação com o futuro da nação é legítima, mas a necessidade de se expressar poeticamente, é, mais do que legítima, imperiosa. Daí a necessidade de expressá-la num poema grandioso, emulando heróis e poetas, como Ulisses e Eneias, Homero e Virgílio, fazendo Vasco da Gama maior do que eles, e vendo-se ele próprio numa dicção maior, “um valor mais alto que se alevanta”, a ponto de intentar cessar “o que a Musa antiga canta” (I, 3, 7-8).
E o poeta não o faz sem mostrar um conflito íntimo, que vai das necessidades que a política governamental impõe à nação, à revelia das necessidades da população, e passa pela incompreensão, com relação ao seu poema, dirigido a uma população rude, sem distinção, nesse aspecto, entre nobres e plebeus, todos “gente surda e endurecida”. Vence a criação poética, o engenho, com a esperança de que o seu verso “se espalhe e se cante no Universo” (I, 5, 7), porque, afinal de contas a vida humana, a tentativa de avançar, mesmo com idas e vindas, marchas e contramarchas, traz alguns feitos “dignos de memória” e ainda que a poesia tenha o condão de registrá-los, tais feitos nem sempre cabem “em verso ou larga história” (X, 71, 7-8).
Gostaria, ainda, José Mário, de trazer mais reflexão ao tema, que me parece, com toda a reverência que tenho, ter faltado ao mestre Massaud. Podemos, indiscutivelmente, ver Os Lusíadas em três tempos: o tempo da narrativa, o tempo da escritura e o tempo presente. Como o poeta é vate – já ensinavam as Musas a Hesíodo, na Teogonia –, ele tem, portanto, a capacidade inata de criar algo que possa se reportar ao passado, permanecer em seu presente e se perpetuar no futuro. E aqui, para desespero de alguns, falo do grande poeta, que não pode ser colocado no mesmo patamar de tantos que existem por aí. Camões é eterno. Vejamos o porquê.
O tempo da narrativa se reporta ao final do século XV (1498), quando Vasco da Gama empreende uma arriscada e real viagem, com o sentido de chegar às Índias, costeando a África, em busca de especiarias (pimenta, noz, noz-moscada, cravo, canela... Canto IX, estrofe 14) e, sendo o caso, expandir o império português. Na profecia de Thétis, a Nereida que acolhe o fictício Vasco da Gama e os seus navegadores, na Ilha dos Amores (Canto X), serão muitos os navegantes, em busca do Oriente e de suas riquezas, tendo em vista que Vasco da Gama, “o peito ilustre Lusitano” (I, 3, 5), será lembrado como aquele que abriu essas portas marítimas (X, 138, 1-4):
Eis aqui as novas partes do Oriente
Que vós outros agora ao mundo dais,
Abrindo a porta ao vasto mar patente,
Que com tão forte peito navegais.
Vê-se, então, que, na realidade ou na ficção, há uma necessidade maior que leva ao desafio da empreitada marítima. Necessidade ditada por uma condição histórica: a tomada de Constantinopla pelos turcos otomanos, em 1453, que se estende para um domínio do Mediterrâneo, leva os povos de uma natureza marítima atlântica, como Portugal e Espanha, a se aventurar a descobrir uma possível ligação entre o Atlântico e o Índico. A partir desse contexto histórico, compreende-se melhor a preocupação do Velho do Restelo com o fato de Portugal deixar “criar às portas o inimigo”, para ir “buscar outro de tão longe” (IV, 101, 1-2). O Império Otomano não se satisfez com Constantinopla e com o domínio do Bósforo, consequentemente do Mar Negro, do Mar de Mármara e do Mar Egeu. Ele queria todo o Mediterrâneo. A conquista do Mediterrâneo significaria tanto a expansão bélica, quanto a religiosa; significaria, em suma, o mesmo que os portugueses queriam: a dilatação da Fé e do Império. Observe, meu amigo, como o poema se articula maravilhosamente!
O medo do Velho do Restelo não se limita apenas ao fato de que inimigos estão à porta, como Aníbal esteve em Roma. Há um receio maior por serem os turcos muçulmanos, religião que se expandiu mais depressa com a fundação do Império Otomano, por volta do século XII. Os versos anteriormente citados (“Deixas criar às portas o inimigo,/Por ires buscar outro de tão longe”), se entendem melhor quando os articulamos com o contexto histórico e com os quatro versos iniciais da estrofe anterior (IV, 100):
Não tens junto contigo o Ismaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
Se tu pela de Cristo só pelejas?
Ora, meu querido amigo, como já disse anteriormente, havia pouco que os mouros muçulmanos tinham sido expulsos da Península Ibérica, após a famosa Batalha de Granada, em 1492, que derrubou Boabdil, o último rei mouro. Portugal, já havia se tornado uma nação, em 1139, na Batalha de Ourique, em que D. Afonso Henriques, seu primeiro rei, derrotou, sob a égide da Cruz Cristã, cinco reis mouros. Depois, em 1147, assediou e tomou Lisboa. De certa forma, os mouros após esses dois momentos passaram a ser um problema mais para a Espanha do que para Portugal. Mas não deixaram de ser uma ameaça. O Velho sabe disso, não só pelos mouros em si, mas pela expansão turca no Mediterrâneo. Eis o conflito estabelecido, em que se troca um inimigo pelo outro e se troca um mar ameaçado, o Mediterrâneo, por um oceano ameaçador, o Atlântico. Seria isto uma “vociferação inútil”?
Entre o tempo em que escreve a sua obra, o tempo da escritura, procurando harmonizar “engenho e arte” (I, 2, 8), e a publica (1572), Camões vê o reino passar às mãos de um rei inexperiente, alçado à maioridade aos 14 anos (1568) e, mal aconselhado, entender de fazer guerra aos mouros, em seus domínios no Marrocos, perecendo aos 24 anos, na Batalha de Alcácer-Quibir (1578). D. Sebastião, a quem o poema é dedicado, não seria “o moço miserando”, na alegoria de Faetonte, citada pelo Velho do Restelo e que levaria Portugal a uma “Mísera sorte! Estranha condição!” (IV, 104, 8)? Não teria o poeta pressentido essa fatalidade anunciada?
Por fim, meu amigo, mas não por último, perdoe-me o clichê, bem aplicável aqui, pela vastidão do assunto e pela grandeza imensa de Camões, chegamos ao tempo presente, para nós, e futuro, para o poeta, em que a sua obra, libertando-se “da lei da Morte” (I, 2, 6), se imortaliza. Nos tempos em que vivemos, faz-nos falta alguém de “aspeito venerando”, que tenha “um saber de experiências feito”, que possa expressar um chamamento para acordar a nossa entorpecida consciência; que nos sacuda e nos faça reagir à bazófia e à ignorância de governantes pusilânimes, fátuos, mesquinhos, cujo objetivo é a ganância e a prepotência. Hoje, mais do que nunca, meu querido José Mário, deveria se fazer ecoar a frase inicial do Velho do Restelo: “– Ó glória de mandar, ó vã cobiça!”. Vivemos uma inquietação na alma, já profetizada por Camões, que não há de ser extirpada, enquanto fecharmos os olhos e continuarmos com a nossa consciência inerte, diante de uma situação de descalabro, a se repetir continuamente:
Dura inquietação da alma e da vida,
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios:
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo digna de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana.
Na esperança de ter contribuído para o bom debate, meu amigo, confesso a minha alegria e meu prazer de debater com pessoas inteligentes, como você!
Grande abraço, do seu amigo e confrade,
Milton