Apesar de enxergar pouco, continuo a recolher no casulo do meu ser grãos de vida, ou melhor, grãos de areia, de ações que transformam o orvalho de bondade das relações sociais, tão ausentes ou fecundadas de sentimentos. Não me conformo que, na luta pela sobrevivência, a vida se torne nada=nada.
Assim, debaixo da pintura do firmamento, o amor deve continuar a ser acolhido e, principalmente, sentido pelo ser humano. Mesmo quando o país viaja em um trem de injustiça e hipocrisia. É preciso alargar o limite de visão e ver a felicidade e a bondade que explodem à nossa frente, ainda que o exemplo nos venha de animais. Por isso, mesmo enxergando tão pouco, procuro por essências e fronteiras. Talvez não siga a regra de todos. Talvez seja um reverso. Na incandescência de um dia de verão, no Rio, detenho-me por mais um pouco, deixando ir embora o ônibus. O que me fez parar: dois cachorros.
Numa grande avenida, com intenso fluxo de tráfego, na qual frequentemente estou por força do tratamento visual, vejo um cachorrinho, de um pelo negro como a noite, mas já marcado pelos maus tratos da rua. Ele queria atravessar. O sinal fechava e abria. Ele se aventurava. Tentava acompanhar as pessoas. Mas o intenso número de passantes, alheios a tudo, muito menos a um simples cachorro, o confundia. Ele sempre voltava à calçada. Caso avançasse um pouco mais, quase sendo atropelado.
Do outro lado da via pública, um outro cachorro cujo pêlo deve ter sido de um amarelo nobre e sedoso, porém muito chamuscado pelo abandono, parecia “perplexo”, ante a hesitação do outro. Aquele ser do outro. Enxergava o lirismo da vida e não era hora de cessar a existência. Um mistério que eu — sem desviar a atenção — acompanhei.
Aquele animal, fustigado pelas intempéries e tantas vezes escorraçado, abriu as portas de seu coração, onde o amor se esconde em plenitude. Os bichos nos dão provas sobejas de que sabem sentir e cultivar o mais belo dos sentimentos: o amor incondicional, solidário, sem limites.
Que fez o cachorro amarelo, embora fustigado pela fome denunciada pela magreza e transfiguração de sua beleza em abandono? Ele deve ser um dos muitos que, abandonados, aprendem a ser “urbanos” — perdoem a nomenclatura, mas tenho percebido que alguns têm, de fato, aprendido, com os humanos, hábitos antes não praticados. Ele aproveitou o sinal. Esgueirou-se entre os humanos e foi ter com o outro. Encostou-se ao outro que — perdoem, mais uma vez — parecia contemplá-lo e ouvi-lo. Quando o sinal abriu novamente, os dois, passo a passo, atravessaram juntos a avenida. Ambos sujos, mas sãos e salvos, seguiram juntos. Como fiquei aguardando o ônibus, vi que se aninharam a um canto de um prédio. Certamente ali repousariam, até que sua luta pela sobrevivência recomeçasse.
Esse exemplo de solidariedade tudo transforma. A vida renasce. O nada se transforma e faz brotar, no fundo da alma, a semente da doçura a voar pelo infinito e que se irradia em cada um de nós. O maior bem de um ser humano é seu próprio irmão. Aquele animal praticou um ato de amor por um irmão. Aquela atitude, por mim testemunhada, é um hino de louvor à misericórdia. Uma ponte para a saudade. O ser humano é uma complexa mistura de emoções, as quais transpõem etapas desta vida terrena. Isto todos sabem. Nada quero ensinar. Como dizia Drummond: amar se aprende amando.
Portanto, não há passado ou futuro no plano divino, em relação à tua ausência em minha vida. Só energia pura. Não cobro — nunca cobrarei explicações. Deus de tudo sabe.
Somente no mundo material os fatos ocorrem em tempos diversos. Para Deus, não existe “já foram”, “estão sendo” ou “virão a ser”.