Em Amar, verbo intransitivo (1927), de Mário de Andrade, a relação entre Carlos e Elza se inicia com a aproximação da linguagem. Durante a narrativa nos deparamos com vários momentos em que o corpo se constitui por meio da língua(gem). Isso é percebido quando ambos os sujeitos “se leem”, cada qual com seus estímulos e impulsos. Elza é a professora alemã do menino. A ela cabe o ensino do idioma de seu país. A atividade docente é interceptada quando entre eles o corpo
se instaura como objeto desejante, e a libido contribui para que o amor se torne transitivo na relação professora-aluno.
No entanto, Elza, na verdade, foi contratada com o objetivo de apresentar o sentimento amoroso como algo ao qual Carlos não deve prolongar ao ponto de “se perder”. Eis o porquê da intransitividade do amor. Dessa forma, a relação entre o garoto e sua tutora é interrompida, contrariando a predicação tradicional do verbo amar (transitivo direto). O amor é descoberto, mas não se desenvolve: “o amor como deve ser. [...] O amor sincero, elevado, cheio de senso prático, sem loucuras”, como enunciado na obra.
Observa-se, dessa forma, que o amor de Carlos por Elza se reduz ao impulso narcisista proposto por Freud, pois esse sujeito se volta para si e “goza” sob seu sentimento, num movimento egocêntrico do qual ele se apropria como pulsão de vida. A professora também compartilha do narcisismo, pois ela é objeto de contemplação e se envaidece pelo desejo que provoca no garoto.
A obra se organiza de maneira fragmentada tal qual é a relação entre a Fraulein e o garoto, na qual há interferência dos pais deste, pois eles sofrem pelo dilema de erotizar ou não o filho. Eles sabem que uma sociedade patriarcalista exige do homem que ele seja um ser ativo e viril. Para que isso ocorra, o pai acredita que nada melhor do que uma profissional cuja função seja a de iniciar o rebento numa vida sexual, de forma equilibrada, para que Carlos não seja refém de um sentimento que possa desestabilizá-lo, levando-o à passividade, por se tornar dependente do amor do outro.
Em meio a isso, denuncia-se a hipocrisia do Felisberto (o pai), que frequenta prostíbulos, mas não aceita que o filho conheça esses ambientes. No entanto, ironicamente, o genitor traz para casa o “bordel”.
Tal qual uma profissional do sexo, a governanta seduz, mas não quer ser seduzida. Todavia, ela, sem querer, cede aos caprichos de Carlos, um garoto mimado, que a provoca uma intensa ternura. A falta de transitividade é encontrada na Fraulein, que faz amar, mas não dá vazão ao amor, ou seja, não se encontra com o objeto dela. Ela é objeto desejado que quer ser desejante. Os oito contos de reis destinados a ela são uma metáfora de um ciclo infinito, representantes de um gozo repetitivo que se estende na sua condição de sujeito que, ao mesmo tempo em que é vítima, traz para si um impulso heroico, porque se reafirma como uma mulher decente, “professora de amor”.
Lacan disse que a fonte de todo desejo está em ser desejado. Carlos almeja uma transição do menino-homem, e Elsa, ainda que relute, busca em suas empreitadas sexuais a fusão do homem-do-sonho + o homem-da-vida. Percebe-se um sutil embate entre a concepção de um amor romântico versus um amor mundano. A primeira categoria de homem emerge de uma imagem diríamos principesca, enquanto a outra se refere ao homem viril, másculo e “machucador”, conforme o narrador nos sugere em falas da protagonista.
A narrativa andradiana é tão complexa quanto o amor, pois esta nos mantém em suspensão ao cogitarmos se há, de fato, um objeto a ser encontrado pelo verbo “amar”. Nos parece que não, pois o idílio se encerra sem que ambos os protagonistas encontrem o complemento verbal e vital (o amor livre), mas que, entre eles, por ventura, dadas as circunstâncias, foi essencialmente acessório. A relação de Elsa e Carlos cumpre um papel de advérbio na literatura cujo autor denuncia a prostituição e o patriarcalismo com bastante recato, repleto de eufemismos e ironias.