O eu-lírico, na poesia de Augusto dos Anjos, não é pessimista in totum, embora possamos detectar um certo grau de pessimismo, por exemplo, no soneto “Psicologia de um Vencido”. Há, no entanto, uma causa plausível para isso, determinada pela situação de que o eu-lírico toma consciência.
Comecemos afirmando que o poema é uma síntese perfeita da evolução da espécie, partindo do primeiro ser vivente até o ser humano, culminando com a sua morte e o retorno à matéria inorgânica. O poema transita, portanto, do inorgânico ao orgânico, estabelecendo novo retorno ao inorgânico e, de modo implícito, a volta ao estado de matéria orgânica. Revela-se, desse modo, a existência de um ciclo infinito que envolve o nascimento e a morte, de acordo com o que apregoava Ernst Haeckel (Les énigmes de l'univers; traduit de l’allemand par Camille Bos. Paris: Librairie C. Reinwald; Schleicher Frères, Éditeurs, 1902. Chapitre XIII, Histoire du développement de l’Univers, p. 279, em tradução nossa):
“O movimento eterno da substância no espaço é um ciclo eterno, com fases de evolução se repetindo periodicamente.”
O processo evolutivo, que se observa nesse poema, mostra-nos, de forma contundente e inequívoca, que o Eu não é individual, mas metonímico, representando a humanidade, desde os seus primórdios. A utilização de um conceito da Embriologia — a epigênesis —, como metáfora de uma infância do ser humano, não apenas a infância de uma pessoa ou de uma singularidade, é inquestionável, na obra do poeta do Pau d’Arco.
Tecido para, pretensamente, nos falar de sofrimento, o soneto traz consigo uma compreensão do que é a evolução das espécies, aludindo aos elementos químicos primordiais, “carbono” e “amoníaco” — este o NH3, um composto de nitrogênio e hidrogênio —, a que se atrela a perfeita definição embriológica, de que somos produtos de uma epigênesis, a qual consiste no desenvolvimento programado de uma célula simples, fecundada (cítula), de que se origina um ser vivo de extrema complexidade, no caso específico, o homem. Verifica-se, no entanto, que esse processo de epigenia não diz apenas, no poema, respeito ao ser humano, mas a todo o sistema complexo da natureza, envolvendo a relação interdependente inorgânico/orgânico, em que um não existe sem o outro.
O entendimento da evolução é compreendido por Augusto dos Anjos como um ciclo lento e difícil, nesse desenrolar de uma matéria para outra, perfeitamente traduzido pela “influência má dos signos do Zodíaco”, verso que,
Guardando-se as devidas proporções, numa escala menor, porém, igualmente lenta e cumulativa, à epigênesis universal, digamos assim, equivale a epigênesis humana. O poema compõe-se, então, num crescendo, do universal para o particular e daí outra vez para o universal, sendo cíclico na sua concepção. Poderia haver melhor compreensão do milagre da vida no universo e da sua particularidade, com relação ao ser humano? Tenho dúvidas.
Tão impactante, quanto a compreensão da evolução universal e individual é o modo como o poeta trata a forma tradicional do verso, ao implodi-la com este magistral decassílabo, de apenas duas palavras: Profundissimamente hipocondríaco! Se o impacto formal é grande, o conceitual não fica para trás, com a revelação de que a doença que atinge o eu-lírico, assim como os demais humanos, não tem uma natureza que possa estar no organismo físico. A “ânsia que se escapa da boca de um cardíaco” origina-se de uma doença psíquica que aniquila o indivíduo, ao ter consciência de que evoluir é sofrer, em todos os sentidos. Para Haeckel, tanto quanto para Darwin, a evolução das espécies é uma guerra contínua, sem trégua,
E essa vida, processada lentamente ao longo do tempo, passa necessariamente por diversos estágios de desenvolvimento, sempre trazendo sofrimento na sua contínua metamorfose.porque sem essa luta nada evolui, nada se expande, que é o sentido da palavra evoluir, abstraída daquele que lhe foi atribuído posteriormente de algo que saiu de uma situação ruim para uma situação melhor.
As surpresas vão se acumulando com a concepção do verme como “operário da ruína”, tirando o poema do lugar-comum da lamentação inócua. De que ruína se fala? Do ser humano, do ser vivo, em geral. Não é, no entanto, a ruína da vida, em si. A vida irá retornar à “frialdade inorgânica da terra”, assim como veio do “carbono e do amoníaco”. O verme é o agente da transição entre a ruína temporária da matéria e a sua reconstrução em nova matéria.
Quanta angústia não há no fato de que o verme espreita os olhos do cadáver e o cadáver não pode fazer o mesmo? Mas se o cadáver já não tem olhos com a capacidade de ver, o homem, que se angustia e se aflige com a inevitabilidade da morte, sabe o que irá acontecer. O medo, questiona-se, é de ter os olhos roídos e a carne devorada pelos vermes, quando a sua matéria corporal já se encontra insensível à dor ou o fato de que metonimicamente a sua permanência, como humano está garantida pelos cabelos, única coisa deixada na terra, do que foi? Permanência determinada pela Lei da Substância, de Lavoisier, citado por Haeckel, que se repetirá ad infinitum, tendo como finalidade o sofrimento, quando se crê apenas na matéria, como parece ser o caso do eu-lírico nesse poema (idem, Chapitre XII, A lei da substância, p. 245):
“A soma da matéria que preenche o espaço infinito é constante. Quando um corpo parece desaparecer, ele não faz senão mudar de forma.”
Aflição da maior espécie, revelada pela dupla face de um ser de “escuridão” e de “rutilância”, oxímoro perfeito para compor o monstro, no sentido daquilo que se mostra, que se expõe, muitas vezes como exemplo, muitas vezes para intimidar; mostra determinada pelos deuses, como na mitologia grega.
Talvez, esteja aí o momento crucial para se entender a evolução e a luta que se trava para a sua existência e, depois, para a sua permanência, na transmissão dos seus genes. Foi necessário que a sopa primordial, com os elementos inorgânicos primevos, formada lentamente na escuridão do universo, fosse atravessada pela luz, por uma descarga elétrica, em um dado momento, de modo a proporcionar uma reação química, cujo resultado foi a vida (idem, Chapitre XV, Dieu et le Monde, p. 322-3):
“A fisiologia moderna nos ensina que a fonte primeira de toda vida orgânica sobre a terra é a formação do plasma ou plasmodomia e que essa síntese de combinações inorgânicas simples (água, ácido carbônico e amoníaco ou ácido azótico) não pode se produzir senão sob a influência da luz solar.”
E essa vida, processada lentamente ao longo do tempo, passa necessariamente por diversos estágios de desenvolvimento, sempre trazendo sofrimento na sua contínua metamorfose.
A compreensão de como se processa a vida, em larga ou em pequena escala, da espécie ou do indivíduo é que leva ao sofrimento mais de natureza psíquica do que de natureza orgânica, causa da hipocondria do eu-lírico. O indivíduo vê-se como um vencido, expressando a sua impotência diante do ciclo universal da vida, de que ele se tornou consciente. É vencido, mas vencido pelo que o ciclo evolutivo determina, não pelos seus esforços pessoais. O “ambiente que causa repugnância” não é do ser humano, mas aquele em que a evolução se processa, impelindo a uma batalha, no enfrentamento que as espécies devem ter, se quiserem permanecer.
Por que a eclíptica solar teria influência má? Porque o ciclo faz fluir para o meio de todas as espécies um enfrentamento sem fim, que bem pode ser metaforizado pela devoração entre elas e entre os reinos. Nessa devoração, o verme se faz mediador. Não é ele, o verme, que produz a ruína, ele trabalha nos escombros dessa ruína, ajudando a organizar, à maneira de um operário, a nova ordem a ser instaurada, na absorção do orgânico pelo inorgânico, que voltará a ser orgânico e assim sucessivamente. É Lei da Substância que se torna recorrente no pensamento do eu-lírico, como se pode ver nos sonetos “Agonia de um Filósofo” e “Último Credo”, e na penúltima estrofe da Parte V, de “Os Doentes”.
Em suma, o eu individual se deixa vencer psicologicamente, diante da impotência do ciclo a que se encontra preso. E a derrota é pelo medo de enfrentar, mais uma vez, mesmo que em outra forma, um ambiente que lhe causa repugnância, tendo em vista a consciência do sofrimento que o aguarda. É uma compreensão parcial da evolução, vista apenas materialmente, porque o espírito ainda não deu o salto perceptivo de que cada sofrimento, cada dor conta para o seu aperfeiçoamento.
Deixemos o grande Ernst Haeckel fechar este texto (idem, Chapitre XIII, Histoire du développemente de l'Univers, p. 280):
“Nós, homens, não somos ainda senão estágios passageiros de evolução da eterna substância, formas fenomenais individuais da matéria e da energia, cujo nada só compreenderemos, quando nos colocarmos face a face com o espaço infinito e com o tempo eterno.”