Em um invólucro, para proteger-me de mim e do mundo, sou incoerente: não quero tamanha proteção. Que o mundo me afete, mas não me fa...

O verso e o reverso

cubismo paul klee misterio vida
Em um invólucro, para proteger-me de mim e do mundo, sou incoerente: não quero tamanha proteção. Que o mundo me afete, mas não me faça perder o afeto. Talvez já seja um tanto tarde demais, mas ainda me resta um pouco de delicadeza. E eu vou entre contrações e descontrações. A cada dia me (re)parto na ávida busca pela unicidade. Antes, ser plural. Mas meu corpo se desencontra da minha alma.
cubismo paul klee misterio vida
Paul Klee, 1920s
Esta pede calmaria; aquele clama por movimento, compromissos e a agenda cheia.

Preciso aprender a conduzir meus anseios, minha extrema vontade de fazer passado, porque tanto almejo o futuro. Aprender a me desarmar diante dos desacontecimentos, porque sempre há algo implícito em cada texto e eu, às pressas, não consigo vê-lo. São valores que transcendem o inacabado que há em mim.

No templo do tempo há uma logística que não assimilo: não adianta ser como um rio porque estamos em períodos de seca. Deixamos ressecar nosso amor quando o orgulho deveria se evaporar. Agora “pretendo descobrir/ no último momento/ um tempo que refaz o que desfez/ que recolhe todo sentimento/ e bota no corpo uma outra vez”.

Mas o corpo fenece. Amor não deve ser posto no corpo porque senão enruga. É no mais recôndito de nós que o mistério sobrevive. Corpo é sagrado e a fé se mantém à socapa como semente que promove o milagre da ressurreição dentro da terra. Será esse o motivo de sermos enterrados quando morremos? Há quem se aterre ainda em vida...

Sou eu e meu açoite. Sou eu fazendo noite durante o dia, construindo cercas quando deveria edificar pontes. Quero uma nova forma para esta realidade: emolduro-me para durar. Para tanto,
cubismo paul klee misterio vida
Paul Klee, 1920s
preciso do auxílio das palavras. Com sua mística, vou transformando o mundo a partir de uma lógica que nenhum dicionário pode assimilar. O verso e o reverso. A cena e o aceno. Faz-se necessária a simbiose entre aquilo que sei e o que a poesia tenta revelar.

Vou seguindo rios, mas meu amor é riacho. Se não fosse a poesia, eu já teria fenecido por saber o quanto estarei debilitado pelo tempo e pelos desamores que (des)comportarei. Que as cicatrizes me lembrem da capacidade de regeneração e que agora a carne está mais difícil de ser cortada. Sangue pra que te quero! É preciso essa sangria – ainda que queira retornar à infância e incorporar a figura do herói; aquele que não teme os obstáculos, o invencível.

Sob a guarda dos símbolos professo minha liturgia diária. Atento aos sinais, lutando para deles não ser refém. Por mais que se condene a mesmice, é nesta que encontramos guarida. Ah, mas eu prefiro o labirinto, o segredo e a novidade. Quebro a cabeça, recolho os meus pedaços, faço o meu mosaico, construo a minha casa e tento me habitar. Preciso viver confortável em mim mesmo.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Outra bela prosa de poeta, pois só um poeta teria esse domínio sobre as palavras, para juntá-las belamente como você as juntou, Leo. Parabéns. Francisco Gil Messias.

    ResponderExcluir

leia também