POEMAS DO LIVRO “O ORNITORRINCO DO PAU OCO” (Editora Cousa – 2018) CUMULUS Quero te dizer de uma nuvem acontecida, das l...

O Estalo da Palavra (XVII)

poesia capixaba jorge elias neto espiritossantense

POEMAS DO LIVRO “O ORNITORRINCO DO PAU OCO”
(Editora Cousa – 2018)

CUMULUS
Quero te dizer de uma nuvem acontecida, das luzes de uma cidade distante, – companheira – desses derradeiros dias, da última idade antecipada, e do dizer errante que se choca feito tempestade com um desejo de fábula.


SORRISO DA INOCÊNCIA
Para uma criança Síria Pousaram para a fotografia as crianças. Estavam quietas despojadas sob o Sol da tarde Sem pressa não lhes ocorriam mais brincadeiras Foto para guardar ― lembrança ― Olhinhos ausentes a fitar a história E fez-se um frio despido de qualquer certeza.


CAMPO DE BATALHA
A manhã se dissipava em tons de normalidade :Trincheiras cobriam a distância do silêncio :Encostas não se prestavam aos ecos :Os sonhos fluiam das valas ao mar (Não se comemora a febre onde inexiste vida.) Na rede de intrigas refringia o orvalho. Nomes brotavam florindo o charco E o perfume ignorava o olfato da ausência. (O mais é um vazio onde inexiste vida.) A brisa revolvia as cartas letras alimentavam os musgos e os metais entoavam louvores. (Pode-se falar de paz onde inexiste vida.)


LIVRO NEGRO
(Do canto obscuro a beira do mito, percorre-se o possível.) Medusa, Sangre minha língua, Recubra de vida a hóstia ─ alento do passado. Musa, surpreenda o que no sossego dos dias tingidos, simplesmente - ignora. Ruína, desabe com as casas mortas. Poesia, transforme em ruído o som da espera. Palavra, seja o orvalho de minha passagem. Eternidade, Estende sobre as asas a poeira das estrelas. Sertão, rege a cisma no terço e aboio dos de minha carne. Cedro, desfaça a nave fenícia e entorne o vinho sobre as aguas. Madrugada, resgata o aceno do tempo em meio a névoa . Solidão, não ignore a oferta do corpo que a procura de ti, salta.


SELFIES
Somos a parte que cobre a Terra, nos sobrepomos sobre os escombros que criamos nos confundimos com o passado não são as casas, as catedrais e palácios ─ são os ossos sobrepostos Escavamos em busca das mascaras de nossos pais, de um deus que nos resgate Espalhamos nossa lama na Terra virgem ─ defloramos Não resistimos a solidão , criamos a farsa E ela é um pântano iluminado sobre uma mesa, empunhado em nossa mãos desesperadas (O tempo - nossa marca na história - nos cavalga à pelo.) Nos contorcemos ─ caricaturas ─ imagem de bocas expondo os dentes nas máquinas binárias Estupidos, transformados em códigos ─ somos um disfarce e vivemos na ilusão de nossa beleza.


SUPER ORNITORRINCO
Acabou o sal ― desperdiçado ― entre os sós, e cada entranha buscava o sustento e a solidão nos escombros ― como um consolo na estranheza. eu, ornitorrinco, ridículo e ébrio, reduzido e semelhante ao consolo dos demais ébrios, ressentia da esperança e claudicava de medo. não tinha lar, não tinha sossego, expirava e o que me sustinha ― o desterro . uma marca guardada, uma flor e o desejo. Chegara o dia em que o temor me abraçara com as trevas e o pavor da extinção. Troquei olhares então com os perdidos no calabouço e percebi o sol que irrigava a terra e o verde que me brotava entre os dedos.


SANTO SUJO
Para Jayme Ovalle Nada sei de mim nesse emaranhado de tinta eclipse do absoluto quando atinjo o último lampejo de deus que se debruça no espaço em que me lanço para alcançar o céu que me aguarda. Nada sei de mim nesse lapso em que me acena o santo sujo suspenso nos arcos da Lapa admirando a partitura dos vagalumes. Nada sei do azul do alumbramento da metáfora inacabada nos alucinógenos neons dos becos de meninos adormecidos recantos de caos que seus corpos guarda. Sei, santo, da voracidade com que tragam a madrugada do acalanto da desordem do silêncio dos espectros desmemoriados. Santo, sei do relicário de ossos sem céu e sem teto. Sei que bebo o que vaza e me inunda e é ácido como vinho jovem.

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