POEMAS DO LIVRO “O ORNITORRINCO DO PAU OCO” (Editora Cousa – 2018) EU ME APRESENTO Há que se entender ou não o ornitorrinco d...

O Estalo da Palavra (XVI)

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POEMAS DO LIVRO “O ORNITORRINCO DO PAU OCO”
(Editora Cousa – 2018)

EU ME APRESENTO

Há que se entender ou não o ornitorrinco do pau oco?

Eu, por exemplo, vivo em busca de algum autoentendimento. Só recentemente, relendo uma definição do Breviário da decomposição de Emil Cioran, é que me descobri um pessimista entusiasmado.

- Mas, antes de uma definição psicológica, quem ler esta coletânea de meus três primeiros livros já publicados, em que incluí poemas inéditos, terá primeiro uma impressão de estranhamento e de curiosidade: o porquê de meu nome.

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Emil Cioran
Entendo.

Embora ainda prefira que o leitor procure ler o poema que leva meu nome – sempre considerei a obra mais relevante do que o autor –, sinto-me impelido a prosear um pouco, talvez deixar algum rastro sobre quem somos nós, os ornitorrincos do pau oco.

É chegado o tempo em que o silêncio e a contemplação passaram a fazer parte do comportamento de um transgressor. É o que conclama a balbúrdia multimidiática de nossos dias.

Na verdade, nada mais efêmero que o conceito numérico dos dias: um ou dois dígitos não preenchem o vazio do homem pós-moderno.

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Barbara M.
E os “vencedores” propõem: Falemos do caos binário, já que se tornou “feio” falar do Sol e da Lua.

O choque. O homem e o tempo, com seus instantes vendidos em módulos. Uma overdose de estímulos de duração efêmera. Eis a droga que carece ser discutida, esta que alimenta o corpo fluido e seus receptores cerebrais carentes de imagens. E é aí que me insiro, e busco me justificar.

Quem sou? Algo indecifrável, como meu coirmão, objeto de estranhamento; mamífero, ave? ... Ovíparo, vivíparo? .... Tudo! Menos útil e justificável. Embora ele ainda desperte alguma curiosidade científica... O que não parece ser bem o meu caso...

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O ornitorrinco do pau oco destoa, e pode, muito em breve, perder de vez muito do lastro dos tempos, desgarrar-se do verde, de sua essência “Terra”. Impregnar-se definitivamente do urbano, perder-se no cinza e embriagar-se com seu-eu-deus-pessoal-bonito no selfie (sou eu lindo na foto, i.e.).

Dito algo sobre o ornitorrinco, há de se falar do “pau oco”.

Essa expressão “roubei” das esculturas que me encantaram na infância, em minhas visitas aos Museus de Ouro Preto e Mariana. Todos sabemos das histórias de ouro e diamantes dentro de esculturas de santos entalhados em madeira em contrabando que ocorria nas minas gerais, nos idos dos séculos XVI-XVIII. Nas costas da imagem (ou em seus pés), de forma camuflada, uma pequena abertura permitia a ocultação do metal nobre e das pedras preciosas que movimentavam o Velho Mundo. É aí que eu me insiro. Vivemos um momento neoantropofágico na poesia. Pelo menos vejo isso como uma das tendências em muitos dos poetas atuais. Na miríade de cores, na hetereogenidade da produção atual, vê-se um esfacelamento do corpo, do que resta do corpo, já que a alma já foi esmigalhada.

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Museu de Ouro Preto (MG) Nelson Kon / Ag. Brasil
O final do século XIX trouxe a proposição da morte de Deus, trouxe o materialismo dialético. O homem oitocentista adentrou-se no novo século deslumbrado com a tecnologia e o conhecimento evolucionista. Tivemos o leninismo-stalinismo e vimos que o homem, vestido com a ideologia, transformou a proposta da utopia nas distopias descritas por Orwell e Huxley. Viveu a insanidade nazista e, com o distanciamento histórico, pode entender que o homem errado no lugar certo pode gerar a insanidade coletiva. Tudo trouxe a descrença, a desilusão e abriu espaço para o deus mercado, o oportunista da vez.

E onde entra o ornitorrinco e o “pau oco” nisso tudo?

Na medida que o poeta é a “antena da sociedade” ― dito gasto, mas definitivo de Ezra Pound ―, o poeta-ornitorrinco carrega consigo todo o estranhamento do que o circunda e, impregnado do que “não tem serventia” e por não optar pelo instante em detrimento do efêmero, corre o risco de se tornar uma curiosidade em risco de extinção.

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Ezra Pound The Cantos of Ezra Pound (YouTube)
Como pude, busquei me desconstruir, entender minha irrelevância relativa nesta vida. Enfim, vi-me um ornitorrinco.

E o que tem de especial o ornitorrinco? O olhar. E a necessidade... A necessidade de abrir o peito, com força, como tão bem ilustrou o poeta e grande artista Felipe Stefani, na ilustração que acompanha este livro.

Abrir o peito e oferecer o que mais precioso ele traz guardado em seu arcabouço de ossos e carne.

Já que o poeta é um estorvo, ele abre seu peito e joga na cara de quem quer que seja, como seu último ato de vida, rasgando sua última pele – a palavra —, mesmo que inutilmente, a “linguagem-ouro de enganar trouxa” que o alimentou enquanto vivo.

Eis aí o ornitorrinco do pau oco, queiram ou não.



ODE À BANDEIRA
Para Jorge Tufic Nosso foco míope, nesse dezembro escarlate ‒ com suas horas retintas ‒ ignora a aurora despreza a lona do circo austral de estrelas impregnando o azul da Nação com a face perdida na orgia. E, essa, desfigurada revisita seus mortos homens pássaros plumagens poesia desgastada. E estendida a flâmula sobre o bastião da América ensaia o remendo do pavilhão desfeito. Há de combinar auroras madrigais sob parcas velas sol à pino de soberbas musas o azul do estio agreste, pinceladas anis de Portinari festivas bandeirolas de Volpi flores de Bracher e o olhar fulminante dos santos de Solha. Há de buscar o irrealizado e cobrir a poeira estendida sobre a consciência. Há de desfazer o irremediável suspiro das águas baças de espumas cravejadas de plásticos que refrigem o sol e sufocam os peixes. Há de se refazer a sinuosidade secular dos rios que ardem sufocados pelas mantas de concreto e fazer brotar as piracemas de escamas furtacor a gargalhar inocência. Há de curar a mágoa de Iracema distribuir oferendas de contas nos remansos que se transmutam em coachar noturno. Há de se dourar as negras coxas com grilhões de justiça desnortear o rumo dos igarapés no descaminho das borboletas amarelas. Há de escorrer ouro das falésias no Atlântico sem fim. Há de distribuir o santo daime na celebração das ocas polvilhar o verde nas esquinas da miséria preencher a atmosfera com paragens bucólicas onde o carvão se regenere em matas e os germes pereçam sob a guarda das harpias. Há de perder-se na remora das paisagens e sentir-se terra.


TERRA DOS PÁSSAROS
Creio nos pássaros que voam bêbados de ocaso. Marco Lucchesi Despejaria meu deus – exíguo – maestro dos mártires, se acreditasse ser possível apagar dessa terra a brutalidade do homem ao cruzar com o absurdo de sua beleza. (Cada homem traz dentro de si um pasto de soberba.) Fecharia a porta brutalmente tombada, resgataria os olhos cerrados para o ilusionismo das cores – cotidiano de assombramentos. E suas asas deteriam a paz do homem que se arremete – ligeiro – para um futuro patético. Respeitoso, entenderia a sonoridade distante do seu canto no silêncio e me ocuparia do imenso.


BACURAU
Quando acordei o pássaro noturno permanecia sob a vidraça. O orvalho, as penas mortas, o desatino da solidão. Fazia frio e meu pensamento caminhava perdido. Testemunhar o que é casa, o que é morte. Não basta a fúria, enterrar-se até à noite. Saber rasgar as roupas, fazer curativos, não devolve o ar roubado. A verdade é o pássaro e o descuido das formigas.


O CÓDIGO DOS PÉS
De que adianta o ser torto os signos nos pés de Buda os dedos verdes do menino São Francisco e a beleza o caminho a pedra o poeta Zaratrusta ‒ o profeta as tábuas da lei a inteligência que medra as incertezas o chapéu elefante do príncipe os dozes ases e o coringa crucificado a maça desvendada sobre a cabeça do gênio Armstrong e o queijo nossos crânios nas mãos de Darwin o ser ou não ser do tablado o primeiro passo nas savanas o legado de Gandhi aviões no horizonte naves no do espaço sob o som de Bach se tudo é areia e nos cobre?


POEMA
Para Ivo Barroso Los hombres son los hombres. Y hay cosas en la vida... Manuel Machado O olhar perdido na ausência é insubornável. Procuro a nobreza desse olhar entardecido de uma ilusão.


RÉQUIEM DAS ÁGUAS
Susurravam as margens do Rio Doce O cristal frio corta, diamante bruto, navalha na carne fraca. o ouro no estio, terra lavada na bateia, dor na pele escavada. Vazou o curral dos homens, o metal―barranco de Minas, pirâmide vermelha despejada ― o Doce amarga. nas sobras d´agua, estrias da morte contornaram as lajes de pedra, levando o Dourado morto que o arrebol cintilava. no vazio fundo zuniu o grito, dragaram o último suspiro. Nação Gê, Krenak, Botocudos, erguei os ossos sonâmbulos. Chegou a tarde, o vento risca as encostas, resseca as margens, rasga o véu de lama, onde, submersas, tilitam moedas.


A JAULA DOS ANJOS
As mãos se encontraram e da força fez-se a escuridão Pássaros perderam-se na noite mas não tinha sentido voar ― caminho ― nenhum ―. (O vasto pertence aos indomáveis e a suas lágrimas). As mãos se encontraram com a força que subsistia no silêncio e estenderam sobre o anjo suas asas tombadas.


HORIZONTE
O entardecer ─ que veste de rubro a tarde ─ e a esperança ─ que faz soluçar de fervor a noite ─ são uma miragem insolúvel. (O que é rente, também transpassa o entendimento.) Morre a nuvem que se precipita banhando de sal o horizonte, tecendo o rumo da vela andeja. O que rasteja, não sobrevive, O que se camufla, não sobrevive, O que urra, intimida, mas também fica à deriva e se dissolve . E o que chega a refringir o horizonte futuro é a mentira forjada, um grão qualquer a aspirar a transcendência.


O NÃO ALCANÇADO
O grande poema, resfria sobre uma almofada – preterido – por um luar perdido, entre as folhas da embaubeira.

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