“Sem poesia não há salvação”, escreveu Mario Quintana. Sem dúvida, uma das pessoas que têm plena consciência desta sabedoria é Jorge Elias Neto, que vem há muito se dedicando à poesia. Neste O ornitorrinco do pau oco, traz-nos ele uma coletânea de seus primeiros quatro livros publicados e poemas inéditos. Segundo Carlos Nejar, o poema de Jorge Elias Neto é “feito de chispas”, o que é uma observação perfeitamente correta. Mas também de sua composição fazem parte – como Nejar também nota – o sonho, assim como o lirismo e, claro, a condição humana de um modo geral.
Ou seja: a poesia de Jorge Elias Neto é feita do que obrigatoriamente compõe esta arte e todas as artes: a vida. Que é tanto heroica quanto acomodada, tão triste quanto alegre, tão sofrida quando feliz – e sempre própria de todos os homens. As diferenças são de alguma personalidade e da circunstância, recordemos Ortega y Gasset. E que são, na verdade, mais do que diferenças, semelhanças...
Como em toda obra escrita ao longo do tempo, os poemas de Ornitorrinco do pau oco nos traz o poeta em momentos variados. O que não poderia deixar de ser, já que o homem, embora semelhante, no geral, a todos os homens, com as diferenças comentadas há pouco, em si também encontra diferenças, jamais é o mesmo, altera-se pelo que lhe vem do exterior e, principalmente, devido ao seu espírito, sempre mutável, inquieto, oscilante, que muitas vezes espanta o próprio homem, que então se desconhece. Com os artistas isto acontece muito: fica difícil acreditar que se criou tal coisa. Álvaro de Campos tem um trecho em que diz:
Depois de escrever, leio...
Por que escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
Isto é muito melhor do que eu...
Sim, não é raro o artista se espantar com criações suas que considera superiores às suas possibilidades...
Construídos em diversos momentos, em diversas situações do espírito, é claro que os poemas deste livro são diferentes entre si. Mas o essencial – a sensibilidade poética – está em todos. Se alguns nos atingem a inteligência solar de Animus, outros nos levam às fontes profundas de Anima. Representando admiravelmente esta última condição, encontramos, por exemplo, “Varal”, tão intenso e alto quanto os melhores poemas líricos que li na literatura brasileira.
E muito mais há neste volume. Dizem que as pessoas só aguentam ouvir discursos até os cinco, dez minutos, depois todas as atenções se dispersam. Penso o mesmo de apresentações de livros – especialmente de livros de poemas. Enfim, quem é que vai querer permanecer na prosa, quando a poesia está logo adiante? Assim, acho que já escrevi muito, talvez demais. E vamos ao que importa mesmo – a poesia de Jorge Elias Neto.
(Ruy Espinheira Filho)
O ornitorrinco do pau oco j'étais le bruit d'absence
Fui pelo não ido das manhãs
em voo de cera e contemplação
perseguindo desvãos no Mundo
fui ao sumidouro dos pés
descendo pirambeiras
em abissais loucuras
fui o anônimo
inacabado de véspera
fui inumano
fui testemunha
de corpo ausente
das praticancias e despudores
fui matraca indignada
fui mendicante
fui a farpa
arrancada da espada
fui consolo adocicado
para línguas ásperas
fui perene e dilatado
fui objeto
fui pão e circo
do apocalipse
fui pudico e privado
fui rasgado
e brocha
fui tardio
sem salva-vidas
fui obsceno
cosseno e outras peripécias
fui o de dentro,
sorriso do redemoinho
fui o gênesis
da comédia humana
fui o esteta do insolvível
fui o engate,
o torvelinho
Fui o poeta.
Não me calo
Mordaça
se rasga com os dentes,
e se me cortam a língua,
reinvento
a linguagem-uivo
— corda vocal é elástico
de boladeira ̶
que atira longe o eco
do desatino.
Questão 1
Em que pés
se sustenta o homem
cujo deus interior
– atordoado –
não mais justifica
a fome do prato
sem hóstia,
do temor
sem abrigo
de uma morte
sem sentido?
Questão 2
A primeira gota
carrega sua identidade
nesse caudal?
Ou se dispersa
como os homens
no sufrágio das almas
nessa penúria dos eleitos
que rogam delirantes
a diluição de sua irrelevância
aos pés da cruz?
Suassuna
Lábios nordestinos
secos
na aridez das certezas
e um perdão
fluido
e um senão
compadecido
e um cão
com plumas
e um sertão
na oralidade
das mãos
na tempestuosidade
do gênio
no dilúvio
da gota serena
na inquietude
demiúrgica das ideias
e um bordão
repisado
oitenta tempos
chão
de um cordel
encarnado.
Há dois corposnão fosse isso
e era menos
não fosse tanto
e era quase
Paulo LeminskiPara tudo existe um peso
que se desfaz
sob o concreto,
que de tão sólido,
amacia as carnes,
apaga desejos
e funde os corpos
num comedido abraço.
Uma medida
do meu sexo
te explorando enquanto dorme
rompendo tua boca
enquanto fala,
carregando o peso
da insônia do Mundo
E uma visão distorcida
do julgar-se saciado
nos lábios
que ainda choram a saudade
de um orgasmo
impossível.
O grilo falante
O que trava a engrenagem do tempo
– essa areia a tanger desesperos –,
vastidão dos ecos insepultos
na remora do desassosego?
Nome próprio – odisséia humana –
dilatado verbo, esse degredo.
Da memória sobrará o espanto,
da tristeza o esgar e o medo.
E os febris cascalhos que rolam
gargalhando por cada tropeço
são presságios da vida inglória
remendada na forma de terço
que deflora de todos a alma,
ignota e morta de berço.
Anacrônico
Meu, é este desperdício,
olhar que não se enquadra,
silêncio que espia na luz apagada,
o medo de não estar vazio
quando se acercar a luz do nada.
Meu, é este dizer do tempo,
discurso interrompido,
lampejo, lamento,
saber inútil
o saco e a porra.
Meu, não é o inicio,
mas o gargalo,
o rente, o arrebol sorvido,
este escuro ‒ noite que ressente de frio,
a fresta que observa,
o liberto, o estio,
ornamento dos dentes,
pavor, pavio.
Meu, é o fim
justificando a queda,
o dedo ‒ semente das unhas,
o arvoredo brotando no interminável.
Meu, é o absurdo,
o privilégio das horas,
o beijo contado,
o assobio, o assombro,
o firmamento inútil.
Meu, é o desafio,
o preto e o branco
e este zelo
pelas coisas perdidas.
Poemas do livro Ornitorrinco do pau oco (Editora Cousa – 2018)