A configuração normal em língua portuguesa é SVO (sujeito-verbo-objeto). Qualquer alteração nessa ordem, por menor que seja, pode perturbar a compreensão do falante. Uma frase simples como “Chegou o trem”, em que o sujeito é posposto, numa pequena alteração da ordem sintática, pode levar o falante a acreditar que “o trem” seja o objeto direto de “chegou” e não o sujeito.
A essa alteração da ordem sintática se dá o nome genérico de hipérbato. Quando é simples, sem oferecer muita dificuldade de entendimento, o hipérbato toma o nome de anástrofe, como em “Chegou o trem”, ou como neste exemplo do Dicionário Houaiss (s.v.): “seu olhar de ira cheio” (= seu olhar cheio de ira). Quando, porém, a inversão é violenta, tem o nome de sínquise, que quer dizer “confusão”, em seu étimo grego.
A letra do Hino Nacional tem algumas sínquises (ou hipérbatos viciosos) que perturbam o falante pouco atento à ordem truncada. Eis o seu início: “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas / de um povo heroico o brado retumbante.” Não poucos estudantes colocam um acento grave em “as”, na ilusão de que a expressão “as margens plácidas” seja um adjunto adverbial de lugar, quando, na verdade, se trata de uma prosopopeia ou personificação: “as margens plácidas” é o sujeito de “ouviram”. A ordem direta dos dois versos é a seguinte: “As margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heroico”.
Mas a inversão mais notável da letra barroca de Osório Duque Estrada está num dos versos finais da primeira parte: “E o teu futuro espelha essa grandeza”. Espelhar é refletir como no espelho. Como o futuro ainda não existe, o sujeito de “espelha” é “essa grandeza”. O sentido do verso é que a grandeza do País espelha o seu futuro, isto é, a grandeza do País será refletida no seu futuro.
Algumas sínquises literárias são notáveis. Um poeta capixaba, Hilário Soneghet, no segundo quarteto do seu soneto “Saara”, incluído no livro Quase toda a poesia (Vitória, Florecultura, 1999, p. 36), diz o seguinte: “O meu camelo, magro, vacilante, / de peso esmaga a carga de marfim, / e, sedentos, nos vamos sempre avante, / eu tendo pena dele, e ele de mim...” A ordem direta é a seguinte: “a carga de peso (= pesada) de marfim esmaga o meu camelo magro, vacilante”. A ordem inversa dá a impressão de que é o camelo que esmaga a carga pesada de marfim, o que não faria sentido.
Carlos Drummond de Andrade, no poema “Brinde no banquete das musas”, do livro Fazendeiro do ar (Poesia e prosa, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1988, p. 249) diz: “Deixaste-nos mais famintos, / poesia, comida estranha, / se nenhum pão te equivale:/ a mosca deglute a aranha.” Na verdade, é a aranha que deglute (engole) a mosca. Em Os Lusíadas, de Camões, no canto V, estrofe 24, o quarto verso é o seguinte: “Mostrara, enquanto o mar cortava a armada,” – isto é: a armada é que cortava o mar.
O que leva um poeta a inverter a ordem num verso não é necessariamente apenas o respeito ao ritmo (que corresponde aos ictos e cesuras) ou à melodia (que corresponde ao jogo de sílabas átonas e tônicas). Se fosse apenas isso, bastaria o acréscimo da preposição A antes do objeto direto para desfazer a confusão da inversão sintática. Os versos de Duque Estrada poderiam ser assim: “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas / de um povo heroico ao brado retumbante” e “E ao teu futuro espelha essa grandeza”. Os versos de Soneghet teriam a sínquise atenuada com o acréscimo dessa preposição: “Ao meu camelo, magro, vacilante,/ de peso esmaga a carga de marfim.” O verso de Camões poderia ser assim: “... enquanto ao mar cortava a armada”; e o de Drummond poderia ser assim: “à mosca deglute a aranha”. Mas o que está por trás da sínquise é basicamente o direito que os poetas e ficcionistas têm de subverter a sintaxe e recriar a língua, mesmo que à custa de um esforço maior do público ledor.