O poema “Lisboa Aventuras”, de José Paulo Paes, do livro Melhores Poemas, da Global Editora, 1998, é um belo exercício de comparação entre o léxico do português europeu e o léxico do português americano.
Eis o poema:
“Tomei um expresso
cheguei de foguete
subi num bonde
desci de um elétrico
pedi um cafezinho
serviram-me uma bica
quis comprar meias
só vendiam peúgas
fui dar à descarga
disparei um autoclisma
gritei “ó cara!”
responderam-me “ó pá!”
positivamente
as aves que aqui gorjeiam
não gorjeiam como lá.”
À primeira vista, o poema dá a impressão de que o Autor pretende dizer que portugueses e brasileiros não falamos a mesma língua. O poema poderia estender-se:
“Peguei um ônibus
desci de uma camioneta
pedi carona
fui de boleia
comprei peixe de uma vendedora
atendeu-me uma varina
namorei uma mocinha
casei-me com uma cachopa,
pedi um celular
deram-me um telemóvel...”
Nossa piteira é boquilha em Portugal, a fila é bicha, a bala é rebuçado, o pito é raspanete, implicar é arreliar, brigar é andar à bulha, calção é fato de banho, bêbado é borrachola, bebedeira é cardina, um aluno vadio é cábula, ser reprovado é chumbar, basquete é bola ao cesto, etc.
Em todas as línguas existem regionalismos, e nem sempre dois falantes da mesma língua entendem os regionalismos um do outro. Vejamos a seguinte frase de um malandro do morro carioca: “O lunfa, cheio de leros, muito liso, mosqueando, pruma defesa, baratinou sem bate-fundo um circuncisfláutico.” Se um carioca do asfalto entendesse essa frase, traduzi-la-ia da seguinte forma, segundo Antônio Fraga, no seu belíssimo livro Desabrigo e outros trecos (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999) “O larápio, cheio de conversa, sem dinheiro, vadiando, para ganhar ilicitamente, fraudou sem briga um posudo.” As aves que gorjeiam no asfalto não gorjeiam como no morro?
O que faz uma língua não é o seu dicionário, não são as palavras reais, não são substantivos, adjetivos, advérbios ou verbos. O que faz uma língua são os seus instrumentos gramaticais: pronomes, preposições, artigos, conjunções, conjugações verbais, flexões nominais (como femininos e plurais). No dia em que o português do Brasil tiver um
O que faz uma língua não é o seu dicionário, não são as palavras reais, não são substantivos, adjetivos, advérbios ou verbos. O que faz uma língua são os seus instrumentos gramaticais.feminino diferente, um artigo diferente, uma conjugação verbal diferente, por exemplo, então não será mais português, mas outra língua. Pode até mesmo haver pequenas diferenças sintáticas de uso (como o gerúndio no Brasil e o infinitivo preposicionado, em Portugal: estou fazendo / estou a fazer; ou como a colocação de pronomes pessoais átonos). Ainda assim, a língua que se fala em Lisboa ou em Coimbra é a mesma que se fala em Brasília ou no Rio de Janeiro. A seguinte frase é genuinamente portuguesa, apesar das palavras em francês, inglês, italiano e espanhol: “A garçonete do drive-in deu um ciao (tchau) para o muchacho.”
O Dicionário Contrastivo Luso-brasileiro, de Mauro Villar (Rio de Janeiro: Editora Guanabara,1989); o Dicionário Lusitano-Brasileiro, de Eno Teodoro Wanke e Roldão Simas Filho (Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1991); o Dicionário Lá e Cá -- Português-Português (Brasília: Thesaurus, 2011) e o glossário Lusitanismos e brasileirismos, também de Eno Wanke (Rio de Janeiro: Edições Plaquette, 1988), apenas atestam diferenças vocabulares entre os dois países. Os diversos estudos dialetológicos do português, desde a edição, no início do século passado, da tese de doutorado de José Leite de Vasconcelos, Esquisse d’une dialectologie portugaise, reeditada em 1970, pelo Centro de Estudos Filológicos de Lisboa, apenas demonstram que não existe língua sem regionalismos, sem dialetos, e que nem sempre os regionalismos ou dialetos são compreensíveis por um falante de outra região.
Apesar de José Paulo Paes, as aves que aqui gorjeiam também gorjeiam como lá... As gaiolas – ou as palmeiras – é que são outras…