Já observou? Há momentos assim. Instantes de paz e quietude que surgem sem explicação. É quando mais percebemos que a vida vale a pena...

Estado de graça

lua natureza estado graca
Já observou? Há momentos assim. Instantes de paz e quietude que surgem sem explicação. É quando mais percebemos que a vida vale a pena. Uma rede, uma varanda, um raio de sol, um cheiro de chuva, o que quer que for então já nos basta.

Gosto quando isso me acontece. Quando os aborrecimentos desaparecem e são substituídos pelo simples prazer de existir. Quando o contato com o lençol, a voz de alguém, um perfume, uma brisa leve
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F. Scaletta
e um voo de passarinho dão-me o sentido agudo, forte, de pertencimento. Nessas raras ocasiões, entendo que também faço parte das boas coisas do mundo. Mais do que isso, ouso acreditar em que o próprio mundo foi feito para minha contemplação e meu encantamento.

Pensando bem, é exatamente este o sentido bíblico da criação: mares, lagos, matas e bichos dispostos ao deleite dos humanos. Do meu, do seu, dos parentes que temos, dos amigos que fizemos e dos inimigos que não deveríamos ter feito.

Ah, se eu tivesse a receita, o preparo do mecanismo que dispara, instantaneamente, a sensação de estar de bem com tudo e com todos. Eu os faria eternos. Penso que talvez esse estado de graça decorra, aleatoriamente, de coisas bobas, independentemente de qualquer vontade. Advém, creio, do jeito como uma réstia escala na nossa velhice a parede da nossa infância, do cheiro de uma panela no fogão com temperos de outrora, do modo como a lua decide se mostrar.

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Roger C.
Embalei os filhos pequenos com os versos de Haroldo Barbosa para a composição de Deutsch e Kaper. Cantei, para que dormissem, “Hi Lili, Hi Lo”. Para quem disso não saiba, é música que, na versão brasileira, reproduz uma canção de passarinho. Serve para espantar dor e tristeza. Diz assim: “Eu levo a vida cantando, hi Lili, hi Lo. Por isso sempre contente estou, o que passou, passou”. Besteira, não? Pois quase vou às lágrimas quando tal quadro me vem à mente. Adoro mesmo lembrar disso, embora consciente de que os versos que acalmavam meus meninos não me servem de acalanto. Cada um de nós deve ter o seu. Não, essa velha canção em mim não dispara o momento do deleite supremo, talvez por saber de suas origens.


A letra original é triste. Diz que uma canção de amor é uma canção de dor. O velho Haroldo mudou tudo. No filme dirigido em 1953 por Charles Walters, Lili (Leslie Caron) é uma órfã francesa adotada pelo pessoal de um circo. Contracena com fantoches, um deles o boneco de Paul (Mel Ferrer) apaixonado pela moça que não o suporta. Todavia, é de quem ela mais gosta por não saber quem está por trás das cortinas. É claro que isso não embala ninguém, a não ser Bronislau Kaper recebedor de um Oscar conferido por Hollywood para trilhas sonoras. A própria Leslie foi indicada para o prêmio de melhor atriz. A versão em português é mais branda e terna. Serve, ao menos, para fazer menino novo dormir.

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F&K Starr
Repito, há acalantos para cada um de nós. Que tal laranja-de-umbigo? Eu, sem me aperceber do acerto, sempre a supus da Bahia e, em tenra idade, imaginava a Bahia na direção contrária. Ficaria, logo ali, depois de Natal. Juízo de menino não tem explicação.

Domingo passado, eu me pus debaixo do pé de fícus situado defronte da antiga padaria do meu pai, hoje uma farmácia pertencente a uma dessas redes regionais. Tinha ali comigo, no templo das minhas memórias, minha mulher, meu segundo filho e minha segunda nora. Educados, atenciosos ao meu relato de coisas passadas, não demonstravam, porém, um miligrama da minha emoção. E eu lhes falava de cadeiras na calçada, das laranjas doces como mel e do som do rádio com o repertório de então.

Minha alma voltou a ouvir “Vereda Tropical”, a canção que meu pai assobiava sem saber dos versos em espanhol. “Voy por la vereda tropical, la noche plena de quietude con su perfume de humedad”. Compreendi e de coração desculpei os que ali estavam comigo. Afinal, aquele nunca foi o mundo deles.


Por falar de músicas, ocorre-me que o gênio criador de um Zeca Baleiro triste, tristinho, pôs-se em estado de graça com um telegrama despachado pela namorada não sabe ele se de Aracaju, ou do Alabama. Dizia assim: “Nego, sinta-se feliz, porque tem alguém no mundo que diz que muito te ama”.

Perdoem-me os que, neste exato momento, porventura estejam de mal com a vida. Devem ter lá suas razões e é bom que as respeitemos. Mas hoje eu acordei bobo, bobinho. Acordei como Zeca. Levantei-me, igualmente, com uma vontade danada de bater à porta e dar bom dia ao vizinho, de mandar flores para o delegado e beijar o português da padaria. Acontece, felizmente, não é?

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  1. Anônimo7/9/24 07:16

    Doce como mel, a crônica nos embala amorosamente. Precisa mais? Parabéns, Frutuoso. Francisco Gil Messias.

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  2. Anônimo7/9/24 07:16

    Doce como mel, a crônica nos embala amorosamente. Precisa mais? Parabéns, Frutuoso. Francisco Gil Messias.

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    1. Anônimo7/9/24 08:12

      Minha gratidão e meu abraço, Gil. - Frutuoso.

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  3. Jose Mario Espinola8/9/24 02:38

    Pois eu digo que, doce, é a felicidade de ter saúde e juízo para degustar uma crônica como esta!
    Ah, se eu pudesse ter esse ritmo, uma escrita com o compasso de uma música…!
    Parabéns, amigo Frutuoso, nome com o sabor das frutas!

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    1. - Profundamente grato, Zé Mário. E muito envaidecido. Afinal, sei do valor de quem assim me elogia. Abraço forte, Frutuoso.

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  4. Anônimo9/9/24 09:41

    Felizmente acontece! E que felicidade essa crônica, me toca essa música de Zeca Baleiro que mainha tanto escutava na minha infância...

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    1. Anônimo9/9/24 17:07

      - Grato e um forte abraço. Frutuoso.

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  5. A simplicidade da vida.
    O passado se fazendo sempre presente e trazendo felicidade!
    Amanhã, acordarei boba, bobinha…
    Obrigada Frutuoso

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    1. Gratíssimo a você. Abraço, Frutuoso.

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